[etnolinguistica] Prefixos relacionais

Meira, S. S.Meira at LET.LEIDENUNIV.NL
Fri Feb 7 21:32:09 UTC 2003


Amigos,

Estive acompanhando a discussão entre Eduardo e Adres
sobre prefixos relacionais. Como o assunto me parece
interessante, gostaria de ver se estou entendendo bem.

(a) Se entendo bem, a diferença de opinião entre Eduardo
e Andres se refere à interpretação de dados (já bem conhecidos)
sobre alternâncias envolvendo raizes em diferentes contextos
morfológicos (contiguidade vs. não-contiguidade a um argumento).
Com base nos mesmos dados, Eduardo postula a existência de
um prefixo, enquanto que Andres postula uma regra de alternância
na consoante inicial (perda, ou aférese, em Membengokre). Certo?

Parece-me, no caso, que a discussão não é tanto empírica
quanto teórica. Vocês parecem discordar sobre que argumentos
são necessários para se atribuir a um dado elemento o "status"
de afixo, ou para atribuí-lo à raiz da palavra. Correto?

Em outras palavras: se temos

(a) Xvcvc... 
(b) vcvc...  Yvcv...

onde vcvc... representa algum tipo de argumento de X/Yvcv...,
temos um prefixo ou não? Eis alguns argumentos:

Andrés observa que: 

(a) em Membengokre, a consoante X não é predizível 
a partir do resto da raiz;

(b) não há o termo livre, sem X ou Y (isto é, não há um
paradigma triforme, X-Y-0, contiguo-a-argumento,
terceira-pessoa, forma-de-citação.

(c) não há raízes flexionáveis que comecem com X e que não 
participem dessa alternância -- i.e. não há X's estáveis.

Eduardo observa que:

(b') não é necessário um paradigma X-Y-0 para se
deduzir que algo é um elemento morfológico independente. 
Por exemplo, ele observa que, no verbo cantar, a raiz
cant- pode ser isolada apesar de não existir nenhuma
palavra "cant".

(c') Eduardo observa que há alguma evidência para
a existência de palavras com a primeira consoante
(X) estável em línguas Jê (o termo para 'semente',
se não me engano). 

(d') Eduardo observa que o fenômeno em questão
corresponde de modo regular a alternâncias semelhantes
que ocorrem em outras línguas da (possível) família
Macro-Jê, bem como em Tupi e Karíb, e que poderiam
servir de evidência para um relacionamento entre essas
três famílias (uma hipótese que eu gosto de chamar
"hipótese Tu-Ka-Jê"). 

Está certo o resumo acima?

Pelo que vejo, o problema é mesmo uma questão de
teoria morfológica. A discussão, claramente, deveria
prosseguir a nível teórico. O que é um prefixo? E quando
sabemos que um existe? É ou não é importante que
haja uma forma-0 para se admitir a análise prefixal? 
É ou não é necessário que se expliquem as várias
formas que o 'prefixo' pode tomar de um ponto de vista
fonológico sincrônico? 

Eu adiantaria: não creio que a resolução da questão 
teórica em si (a qual, por sinal, é bastante interessante)
afete as conclusões de Eduardo e de Andres. Já que:

(a) Andrés discute um fenômeno sincrônico do 
Membengokre, e, como ele mesmo admite, não
haveria nenhum problema se, historicamente, as
alternâncias atuais proviessem de um prefixo (seja
do Proto-Jê, do Proto-Marco-Jê, ou do Proto-Tukajê).

(b) A possibilidade das alternâncias em Membengokre
não serem mais sincronicamente atribuíveis a um prefixo
concatenativo independente não impede que as correspondências
que Eduardo menciona em seu artigo sejam perfeitamente
razoáveis. Afinal, um elemento independente pode perfeitamente
tornar-se parte de uma raiz, e também ser cognato com
elementos ainda independentes em outras línguas. O
prefixo latino per- está tão perfeitamente integrado à
raiz da palavra "perguntar" em português, que poucos
se dão conta dele (a parte "guntar" é, de fato, 
a mesma que o verbo "contar": *per-contare > perguntar).
Este prefixo per-, apesar de não existir sincronicamente
em português, é ainda cognato com prefixos sincronicamente
identificaveis em outras línguas Indo-Européias (ver- 
em alemão,  pre- em russo, etc.). 

(c) Além disso: mesmo que a análise sem prefixos
prevaleça, isso não impede que as alternâncias 
sejam comparadas e delas se derive um argumento
para o parentesco entre as línguas em questão. 
O argumento de parentesco não depende, por si,
da existência de um prefixo, mas da existência
de uma regularidade com correspondências regulares
entre as várias línguas. Nas línguas celtas, por 
exemplo, prevalece a análise não-prefixal: 
as alternâncias (ou mutações, como as chamam
os estudiosos da família celta) são analisadas
como fenômenos que afetam as consoantes iniciais
das raízes. Isso, no entando, não impede que se
possam comparar, e até reconstruir, as alternâncias
para vários níveis intermediários dentro da família, 
de modo a rastreá-las até suas origens. (No caso
em questão, por curiosidade, trata-se da perda de
vogais finais que causavam a lenição da consoante
seguinte. Por exemplo, em um sintagma nome-adjetivo,
havia uma vogal final que marcava o feminino: N-a A-a.
Esta vogal -a provocava a lenição da consoante inicial do
adjetivo. Quando ocorreu a perda das vogais finais, 
o feminino passou a ser indicado unicamente pela 
alteração da consoante inicial do adjetivo. Há fenômenos
semelhantes em certas línguas latinas, como o corso.)
E, de fato, a presença de alternâncias iniciais é um 
argumento aceitável para a inclusão de uma língua na
família celta -- se essas alternâncias ocorrerem exatamente
nos contextos certos, e se seus padrões corresponderem
regularmente aos padrões da família, etc. 

Ou seja, o problema de o padrão em questão contribuir
com um argumento a favor da família Tukajê é independente
da análise morfológica desse padrão. Ambas as questões
são interessantes, e merecem ser discutidas.

Assim como é possível que um antigo prefixo
tenha se tornado parte da raiz, não se pode excluir
a idéia de que uma antiga parte da raiz tenha virado
prefixo. Por exemplo: o Denny argumenta, com dados de Mawé,
Gavião e Suruí, que seria perfeitamente possível passar de 
uma língua com o padrão X-Y-X (i.e. com a mesma forma para 
citação e posse por argumento nominal, mas com uma forma 
diferente para posse de terceira pessoa) para o padrão X-Y-0 através da
perda da consoante inicial da forma de citação. Perfeitamente
possível. Só que, sincronicamente, isso não precisa afetar
a análise das línguas Tupí-Guarani como possuindo prefixos
relacionais. Bastaria dizer que a queda da consoante inicial
da forma de citação levou ao surgimento de um prefixo relacional,
se aceitarmos que o padrão X-Y-0 basta para justificar a
análise prefixal. Mas, nesse caso, o sistema anterior, X-Y-X,
não teria prefixos; e isso teria conseqüencias para a reconstrução
do sistema em Proto-Tupi, e sua futura comparação com os
sistemas reconstruídos do Proto-Karíb e do Proto-Jê. 
(Por sinal, digo de passagem que a situação em Mawé é
um pouco mais complicada: as duas formas para 'nome', 
/het/ e /set/, ocorrem no paradigma de posse, com prefixos
diferentes: /e-set/ 'teu nome', /u-het/ 'meu nome'; a segunda
pessoa plural é /e-het/ 'vosso nome', e se distingue de 'teu
nome' somente pela alternância h/s.)

Concordam comigo? Pois então podemos
todos tomar cerveja (no meu caso, guaraná).

Sérgio Meira.


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