[etnolinguistica] Representar Abralin no MEC

dangelis at UNICAMP.BR dangelis at UNICAMP.BR
Sun Jul 6 19:04:21 UTC 2003


Eduardo e Mônica

Há, evidentemente, vários critérios que cada um pode eleger para escolher
seus representantes em cada contexto ou para cada tipo de representação.
Aquele que vocês elegem (o da definição de ortografias) é um, mas não
necessariamente o mais importante do ponto de vista de outras pessoas.
Entretanto, como a Prof. Marília Facó e eu aceitamos a indicação de nossos
nomes para a candidatura à representação da Abralin junto ao MEC (para os
programas de educação escolar indígena), penso poder ao menos indicar um
caminho à questão que lhes preocupa.
Vocês se queixaram da extensa lista de atuações e de trabalhos publicados
(eram apenas aqueles ligados à questões de educação escolar indígena),
divulgados  pelo Prof. Aryon Rodrigues, com o lançamento dos nomes da
Prof. Marília e meu. Penso que o Prof. Aryon já respondeu a isso, mas não
custa dizer de novo: a lista é grande porque fazemos isso há muito tempo,
e com muita intensidade. E não apenas atuamos, como produzimos uma
reflexão e uma elaboração teórica que têm merecido reconhecimento.
E é justamente nessa elaboração teórica que sugiro que busquem, tanto no
caso da Profa. Marília como no meu, as posições já tornadas públicas em
relação ao tema que lhes preocupa. De fato, pouquíssimos lingüistas têm
publicado, no Brasil, estudos que revelem e reflitam suas experiências no
trabalho de definição de ortografia de uma língua indígena; entre esses,
estamos Marília e eu. No caso dela, publicou um primeiro trabalho sobre o
assunto já há 20 anos atrás (!) e alguns outros desde então. No meu caso,
publiquei um primeiro há quase 10 anos, e voltei ao tema das ortografias
em texto apresentado no encontro da ANPOLL do ano passado (GT Línguas
Indígenas). Aliás, fui o responsável por propor e organizar, pela primeira
vez em um congresso aberto no Brasil, uma mesa tematizando os “aspectos
técnicos e políticos na definição de ortografias de línguas indígenas” (no
10o. COLE – Congresso de Leitura do Brasil, em 1995), com participação dos
profs. Angel Corbera Mori, Lucy Seki e a própria Marília (veja-se
D´Angelis e Veiga 1997: “Leitura e Escrita em Sociedades Indígenas”, pp.
23-52).
Certamente nem eu, nem a Profa. Marília, já teremos tratado de todos os
temas relevantes relacionados à participação dos lingüistas em programas
de educação escolar indígena, mas não é pouca, por outro lado, a
elaboração teórica e o registro que temos feito de nossas experiências.
E, é importante que se diga, nossa compreensão política sobre as questões
relacionadas à educação escolar indígena, é igualmente pública, porque
está expressa, de diversas maneiras, nos trabalhos que apresentamos em
congressos e publicamos. Entendemos que seria inaceitável (e desonesto)
reduzir a participação dos lingüistas em educação escolar indígena a um
papel de técnicos (como é inaceitável reduzir a lingüística a uma técnica
ou conjunto de técnicas). Mas se restringirmos o debate sobre nossa
participação à questão das técnicas de análise fonológica e
estabelecimento de ortografias, podemos facilmente cair nesses equívocos.
Não temos qualquer dificuldade em discutir esses temas, por isso já
tornamos públicas nossas posições, e temos trabalhos de qualidade nesse
campo, mas insistimos em evitarmos essa redução.
Do mesmo modo – recusando certas práticas que, por influência estrangeira,
por muito tempo foram valorizadas aqui –  nós entendemos que são as
comunidades indígenas as principais gestoras e beneficiárias das práticas
educacionais, ou seja, elas devem ser sujeitos do processo, e não apenas
objeto da ação de um agente externo que acredita deter, unilateralmente
(quase sempre, com alguma arrogância) as soluções para a educação indígena
no Brasil. Essas, aliás, não existem prontas nem na cabeça nem na prática
de uma só pessoa ou mesmo de uma boa equipe, em um único lugar. Trata-se
de um processo em construção coletiva, e que só acontece em um diálogo
verdadeiro e em práticas concretas no chão da aldeia, sob o teto de suas
escolas. Essa é a nossa prática, ou talvez melhor dizendo, nossa práxis,
que não concebe separar ação de reflexão.
Por fim, acho que a divulgação da relação de nossos trabalhos não deve ser
entendida como um preenchimento métrico de linhas de um currículo; jamais
tivemos essa intenção, e nenhum de nós dois precisa disso. Entendo que a
divulgação pretendia, além de mostrar a existência dessa reflexão escrita,
indicar sobre que coisas temos escrito, em educação escolar indígena, e
dizer onde estão esses escritos, para quem queira conhecer-nos melhor.

Bem, o que está escrito acima era basicamente a minha mensagem, em
atendimento ao convite/proposição de vocês, mas não tinha tido a
oportunidade de enviá-la. Ao fazê-lo, agora, vejo que é oportuno comentar
alguns tópicos da mensagem que Luciana e Filomena escreveram e divulgaram
há poucos dias.

A primeira coisa que me chama a atenção, naquela mensagem, é sua abertura,
ao anunciarem que “as posições sobre questões educacionais” que gostariam
de tratar “são empíricas e voltadas para os resultados”. A passagem revela
uma evidente preocupação consciente de demarcar uma recusa de posições
“não-empíricas” e “não voltadas para os resultados”. O que seriam essas
posições? Imagino que seriam as que se classificaria como “teóricas” e
“diletantes”. De quem seriam tais posições? Qual é o discurso que está
sendo recusado e negado, mas ao mesmo tempo, apagado?
Bem, no nosso caso, de certo modo já esclareci anteriormente: temos um
trabalho de ação direta junto a comunidades indígenas, e também na
formação de professores índios, do qual não separamos nosso trabalho de
reflexão teórica. O problema da redução ao empirismo e a uma “lingüística
de resultados” é que isso não é uma fuga de discussões e posições
teóricas: ao contrário, é uma posição teórica bastante conhecida que, no
caso da Lingüística, é um eco das abordagens anti-mentalistas do
estruturalismo norte-americano (de recorte bloomfieldiano). Mas foi
exatamente esse o aparato teórico que fundamentou o trabalho de “redução à
escrita” feito por missionários norte-americanos sobre as línguas
indígenas brasileiras, com resultados bastante discutíveis (em muitos
casos, bastante lamentáveis). Aliás, aquelas experiências históricas são
exemplares para demonstrar que não basta saber fonologia (e, ainda nesse
aspecto, há muito que se pôr em dúvida: afinal, reduzir Fonologia à
Fonêmica é uma limitação da qual padecem também lingüistas, não apenas
missionários), é preciso saber também de teoria da escrita e de processos
de alfabetização.
A outra questão é a que remete às queixas de professores “representantes”
de muitos povos indígenas quanto às publicações e ortografias de suas
línguas. Todos nós que trabalhamos nesse campo já ouvimos queixas
semelhantes em várias situações e de várias etnias, e costumamos trabalhar
isso com os interessados, tomando o necessário cuidado de reconhecer:
– que as sociedades indígenas não são unanimidades, nem antes e, muito
menos, depois das relações de contato cultural, político e econômico com a
nossa sociedade. Assim, sempre é preciso relativizar a
“representatividade” de indivíduos, de modo que ela não substitui a
relação direta e demorada nas aldeias, com o conjunto das comunidades.
– que as questões ortográficas nunca estão separadas das relações sociais
e políticas internas e externas às comunidades indígenas. Muitas vezes
elas podem refletir profundas cisões estabelecidas antes e fora da
escrita, por outras razões e interesses, incluindo questões de
(reivindicação de) identidade étnica, em algum momento sufocadas: por
exemplo, quem definiu que X era dialeto de Y, e não outra língua? Isso não
é uma mera questão “técnica” da lingüística!
– que, fruto da situação de contato lingüístico, o professor indígena (com
freqüência, alfabetizado em Português), apresenta demandas sobre a
representação escrita de sua língua que nem sempre são as do nativo
“leigo” (esse, sim, o melhor representante da consciência fonológica de
sua comunidade).

Por tudo isso, acho simplista e de um tom anti-dialógico, uma postulação
categórica, externa às comunidades indígenas, que afirma: “Somos
contrárias à publicação de materiais que contenham inconsistências”. Não
pretendo defender o que se chamou ali de “inconsistência” ortográfica,
como objetivo ou ideal de escrita. Mas não abomino as situações das
comunidades – e as atuações de assessores lingüistas –  que, por razões
várias, aceitam imprimir materiais sem que ainda esteja estabilizada uma
forma ortográfica para determinadas palavras. Ainda que as situações e
contextos sejam diferentes, não podemos ignorar a história da apropriação
da escrita por línguas como o Galego e o Português: é curioso que não se
tenha encontrado qualquer texto (pré-imprensa) ou, ao menos, alguma linha
escrita por alguém entre os séculos XIII e XVI, queixando-se da
inconsistência da escrita do Português por seus conterrâneos (quando
sabemos que essa “inconsistência” perdurou com vigor por mais de 400 anos
na escrita da língua portuguesa). O primeiro texto que defende alguma
“consistência” ortográfica aparece quando a língua Portuguesa já tinha
mais de 350 anos de tradição escrita (!) e, sem dúvida, ele já tinha
relação com preocupações (e interesses) dos impressores.
Isso não significa que não concorde com um ponto importante também
expresso por Luciana e Filomena: a necessidade de um diálogo verdadeiro
com a comunidade (!) sobre sua língua e o seu sistema fonológico para
assessorá-la (segundo minha maneira de ver, e minhas experiências nesse
campo) a decidir (com autonomia) sobre a escrita daquela língua. Acho,
porém, pouco claro o sentido do que elas dizem a respeito do lingüista
“propor formas (...) de utilizar a escrita na documentação não trivial da
cultura e da língua”; na verdade, a dúvida vem da exemplificação: “por
exemplo, em coletâneas de narrativas tradicionais contadas no estilo
tradicional”. Transpor narrativas tradicionais para a escrita, em minha
opinião, não é nem pode ser a regra; antes, é a exceção. Ou seja,
aplica-se apenas quando uma série de condições dadas justificam esse
“congelamento” (que a escrita promove) sobre a narrativa oral. Essa
questão, especificamente, já mencionei em um texto publicado em 1997
(capítulo inicial de “Leitura e Escrita em Sociedades Indígenas”) e
retomei, com profundidade, em um trabalho defendido no IV Encontro
Nacional de Língua Falada e Escrita, em Maceió, nov. 2002 (“Como nasce e
por onde se desenvolve uma tradição escrita em língua indígena?”).
Na mesma mensagem, as colegas se ancoram na experiência de Ken Halle.
Sinceramente, no meu caso, não autorizo os alunos a invocar a minha
experiência em seu favor. São coisas que não se transferem. Por isso
mesmo, dirijo uma crítica à compreensão de Luciana e Filomena, antes que a
Ken Halle, cujas idéias, nesse aspecto, não conheço: é absolutamente
simplista e, por isso, equivocada, a afirmação de que “o ensino da língua
indígena escrita nas escolas aumenta o prestígio da língua...”. Sou um
defensor inveterado da construção de programas de ensino bilíngüe
adequados às situações diversas das comunidades indígenas no Brasil.
Acredito que o mesmo vale para as professoras citadas. Por isso mesmo é
fundamental conhecer, como lingüistas, as diferentes abordagens e os
diferentes tipos de programa bilíngüe, assim como, as variáveis de
situação que emprestam eficácia diferente aos distintos tipos de programa.
Como lingüistas que intervêm em programas de educação escolar indígena e
pretendem atuar mais nesse campo, é indispensável que as colegas se
informem sobre os efeitos perniciosos de alguns programas de bilingüismo
de transição implantado no Brasil pelo empreendimento
“científico-missionário” do SIL – Summer Institute of Linguistics (alguma
menção podem encontrar em um texto meu publicado na revista Liames n. 2).
Em outras palavras: alfabetização em língua indígena não significa,
necessariamente, valorização (e, menos ainda, fortalecimento) da língua
minoritária.
Por fim, “sobre a importância de ensinar conceitos lingüísticos aos
falantes envolvidos em trabalho com a sua língua, na medida do possível, e
em formar linguistas nativos”, não pretendo subestimar as posições de Ken
Halle, mas as colegas poderiam igualmente aprender sobre isso colocando
maior atenção e estabelecendo diálogo com experiências frutificadoras que
se vêm fazendo aqui mesmo, em nosso país, por lingüistas brasileiros, e
que têm defendido essa posição publicamente em diferentes oportunidade.
Não mencionarei alguns dos nomes que me ocorrem, para não cometer
injustiças com algum colega que porventura possa omitir. Mas quem tenha
uma visada dos trabalhos de formação de professores indígenas no Brasil,
sabe de que experiências estou falando.
Enfim, não sei se era isso que os moderadores da Etnolingüística entendiam
como o debate necessário. Para encerrar, volto ao ponto das listas
quilométricas: a professora Marília e eu nos propusemos a atuar como
representantes da Abralin junto ao MEC, para as questões de educação
escolar indígena, porque temos uma longa história de trabalho e
convivência com sociedades indígenas no Brasil (pessoalmente, atuei como
indigenista por 10 anos, antes de iniciar minha formação como lingüista),
e uma razoável contribuição à reflexão teórica sobre educação escolar
indígena, vinda de nossa práxis. Não precisamos demonstrar nossa
competência ou nossa experiência como lingüistas ou como fonólogos (nossos
trabalhos são públicos), e por isso mesmo entendemos que o debate sobre
educação escolar indígena é pobre e equivocado, se restrito a esse tópico.

Wilmar R. D´Angelis




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