[etnolinguistica] Ortografia e padronização

Eduardo Ribeiro avepalavra at YAHOO.COM
Fri Jul 11 04:27:49 UTC 2003


Caros colegas,

Na carta de Consuelo Alfaro, parece ter havido um equívoco na interpretação das sugestões de Storto e Sândalo quanto à padronização. Não creio que as candidatas estejam defendendo que se eliminem diferenças que de fato existem na língua, mas que se evitem diferenças artificiais, introduzidas pura e simplesmente pela falta de consistência na ortografia (resultante, em geral, da incompetência ou da preferência pessoal de lingüistas, não do desejo da comunidade de falantes). Diferenças dialetais ou estilísticas devem ser respeitadas, naturalmente; creio que a grande maioria dos membros da lista concordamos quanto à importância da diversidade lingüística.

É claro que, como aponta Consuelo Alfaro,  é necessário que se esteja atento para os fatores ideológicos que permeiam questões ortográficas, como no exemplo do Quechua. Mas, como aponta Sidi Facundes, uma ênfase nos aspectos técnicos da educação indígena não implica desconhecimento ou desconsideração dos aspectos ideológicos. No caso do Quechua, se entendo bem, os esforços de padronização envolviam não apenas a ortografia, mas também o léxico. A idéia de se atingir um 'Quechua Unificado' foi levada ao extremo de se eliminarem traços marcadamente regionais e de substituir palavras dos dialetos atuais por palavras reconstruídas para o Proto-Quechua. Este esforço não deve ser avaliado fora do seu contexto: no caso do Quechua, tentava-se criar condições para que a língua indígena pudesse concorrer, como língua oficial, com o espanhol. A situação das nossas línguas indígenas é bastante diferente e há certamente outros fatores ideológicos a serem considerados.

Creio que o uso que Consuelo Alfaro faz de exemplos do português tenha sido menos instrutivo. A lista de palavras da língua portuguesa que, de acordo com ela, apresentam 'inconsistências', representa de fato variedades de pronúncias que realmente existem na língua (seja por razões dialetais ou estilísticas); aprendê-las, assim, ajuda a ampliar o horizonte intelectual do aprendiz. Sua representação no dicionário não é necessariamente uma conseqüência de fatores ideológicos, mas sim um reflexo da diversidade que caracteriza a língua portuguesa. Assim, muitos, em Goiás (por exemplo), dizem 'barrer', 'bassoura' e 'sobaco', enquanto outros dizem 'varrer', 'vassoura' e 'sovaco'; alguns dizem 'ouriço-cacheiro', muitos dizem 'luís-cacheiro' (uma delícia da etimologia popular) e outros, ainda, 'porco-espinho' (enquanto, mais ao norte, é possível ouvir também 'quandu'); e por aí vai. Diferenças deste tipo são parte do patrimônio lexical da língua e devem ser respeitadas.

Mas há diferenças, registradas em material didático em línguas indígenas, que refletem não riqueza lexical ou variedade de pronúncia, mas uma análise equivocada da fonologia da língua. Na nossa produção de material escrito em Karajá (no Projeto de Educação e Cultura Indígena Maurehi), levamos sempre em consideração as diferenças entre os quatro dialetos (Karajá do Sul, Karajá do Norte, Javaé e Xambioá), além das profundas diferenças entre as falas feminina e masculina. Os Karajá são os primeiros a reconhecerem e celebrarem as diferenças: diferenças dialetais são exploradas com fins poéticos em pelo menos um gênero de canções (chamadas weru wiu) e, apesar de gerarem às vezes debates apimentados, são em geral uma fonte de prazer verbal. Nunca se sugere que o Xambioá hakiriri 'tatu' deva ser substituído por kohã, comum aos demais dialetos, ou que a morfologia do Karajá do Sul seja mais 'correta' que a dos demais dialetos -- assim como seria simplesmente absurdo sugerir que 'vassoura'
 deveria expulsar 'bassoura' do léxico português.

Apesar de os dialetos apresentarem diferenças lexicais e até mesmo morfológicas, compartilham o mesmo inventário fonológico. É possível, assim, obter-se uma ortografia unificada (encorajada pelos Karajá), o que permite o intercâmbio de material didático entre as aldeias, etc. Apesar disso, a ortografia do Karajá apresenta várias inconsistências, devidas à análise fonológica equivocada e a decisões ortográficas apressadas. Diacríticos são usados para marcar as vogais mais freqüentes; por exemplo, apesar de /o/ aberto ser três vezes mais freqüente que /o/ fechado, o diacrítico é usado com o /o/ aberto. Para se ter uma idéia do quão cansativo isto é para quem escreve, basta dar uma olhada nas páginas de textos em Karajá. Escolhas deste tipo têm conseqüencias mais amplas no sistema ortográfico, mas me limito aqui a este exemplo. As queixas dos Karajá no que diz respeito à ortografia não são simplórias. Pelo contrário: eles apontam exatamente qual é o problema e questionam acerca da razão
 que teria levado o lingüista do SIL a tomar esta decisão em vez de outras alternativas mais inteligentes.

Um outro exemplo diz respeito à falta de símbolos para representar fonemas peculiares da língua indígena, inexistentes em português. Em Karajá, 'ele se sentou' aparece escrito ora como runyre, ora como ronyre, em materiais publicados pela mesma instituição (o SIL, em convênio com a Funai). Esta variedade na escrita não reflete variedades na pronúncia: todos pronunciam [rU'nãre], onde /U/ representa uma vogal posterior alta [-ATR] parecida com a vogal da palavra inglesa book (e que, em Karajá, contrasta fonologicamente tanto com /u/, quanto com /o/). Como a escrita não obedece a critérios internos à língua, os falantes se vêem forçados a recorrer aos 'cânones' da ortografia, representados pelas cartilhas do SIL ou pelo 'especialista' não índio. Uma ortografia fonologicamente consistente, que respeitasse as peculiaridades da língua indígena (em vez de representá-la como um arremedo do português, ou do espanhol, ou do inglês) ajudaria a romper esta relação de dependência dos falantes
 com relação aos assessores lingüísticos, missionários ou outras 'autoridades' alheias à comunidade.

Na minha experiência com os Karajá, não tenho observado as dificuldades mencionadas por Dan Everett quanto à compreensão do conceito de fonema (ou até mesmo conceitos mais controversos, como o de palavra fonológica). Entre os professores Karajá com quem tenho trabalhado incluem-se intelectuais brilhantes -- muitos deles, excelentes lingüistas, que têm muito a ensinar aos 'especialistas' quando estes se dispõem a ouvi-los. Apesar disso, quando comecei a estudar a língua, notei que os Karajá se voltavam freqüentemente para os lingüistas não-índios para decidir como se deveria escrever esta ou aquela palavra. Evidentemente, se, depois de décadas de experiência com a escrita, os Karajá ainda dependem de lingüistas para a tomada de decisões acerca de sua própria língua, há algo fundamentalmente errado com a ortografia (que deveria ser o mais transparente possível) e com o papel tradicionalmente desempenhado pelos chamados assessores lingüísticos.

Creio que um dos papéis fundamentais dos lingüistas em projetos de educação é o de capacitar os intelectuais indígenas a tomarem decisões por conta própria. Este processo de capacitação poderia incluir, sim, o ensino de conceitos lingüísticos e técnicas de análise, úteis na elaboração de dicionários, por exemplo. Isto levaria eventualmente à formação de lingüistas nativos, o que eliminaria a dependência com relação a assessores lingüísticos não-índios. No caso do Projeto Maurehi, a discussão de questões ortográficas tem inclusive levado ao desenvolvimento de terminologia lingüística na língua indígena, como no caso dos termos iwetari 'leve' e ikutxie 'pesado', referindo-se às vogais [-ATR] e [+ATR], respectivamente -- uma distinção fundamental na fonologia do Karajá e que deve ser bem conhecida por aqueles que, conhecendo apenas o português, estão lutando para aprender, com a ajuda da escola indígena, a língua de seu povo (extremamente ameaçada em aldeias como Buridina, em Goiás).

Questões semelhantes a estas são discutidas por Nora England no artigo 'Doing Mayan linguistics in Guatemala', publicada na coletânea organizada por Ken Hale (1992), arquivada na página do 'Etnolingüística' (http://br.groups.yahoo.com/group/etnolinguistica/files/Biblioteca_Virtual/). Consuelo Alfaro sugere que a concepção idealizada da escrita como uma representação fiel dos sons corresponde "à lingüística dos anos 50 e, talvez, essa representação idealizada guarde relação com as representações que as sociedades ocidentais elaboraram sobre essa prática social." No entanto, o mesmo pode ser dito com relação às concepções que vêm ganhando força recentemente, de acordo com as quais aspectos técnicos da escrita são pouco importantes: isto reflete, mais uma vez, uma mudança nas representações que as sociedades ocidentais elaboram sobre a escrita. É uma mudança que vem ocorrendo nos meios acadêmicos e, como sempre, tem muito pouco a ver com o que os índios querem. É importante que se
 analise o que os falantes da língua realmente pensam acerca de tudo isso. Isto foi exatamente o que Nora England fez em seu excelente artigo, cuja leitura eu recomendo. No caso dos Maya (como no caso dos Karajá que acabo de relatar), aspectos técnicos são considerados extremamente importantes pelos intelectuais indígenas.

É claro que os problemas variam de caso a caso. Não há regras universais. Por isso, o envolvimento do lingüista com a comunidade é essencial e projetos com fortes vínculos comunitários, na minha opinião, terão muito mais chances de serem bem-sucedidos. Hoje em dia tem-se investido muito dinheiro em projetos de amplo escopo, que reúnem várias etnias diferentes (principalmente no caso de programas desenvolvidos por secretarias estaduais de educação). Talvez seja interessante avaliar até que ponto projetos desta natureza seriam capazes de levar em consideração as necessidades especiais de cada grupo étnico.

Cordialmente,

Eduardo


Citando Consuelo Alfaro:

no Equador, se escreve quichua. O principal aspecto que deve ser
levado em conta é a natureza histórica e social da escrita e da ortografia, portanto, entendida como uma criação coletiva, não como uma questão meramente técnica, embora dialogue com esse conhecimento.

Um ponto que merece destaque, ainda no documento, é a representação naturalizada da escritura alfabética da língua portuguesa, como coerente. A
questão está tão ideologizada que o 'nativo' tem dificuldades em reconhecer
as incoerências gráficas da ortografia alfabética das línguas oficiais dos
estados modernos, inclusive a língua portuguesa. Grafar um (h)
mudo, representar o mesmo som com grafias diferentes (x), (ch), são
inconsistências no mesmo sentido argüido no documento. Aqui vai uma
amostra de mais inconsistências que os nossos filhos aprendem e os pais toleram:

> assobio - assovio
> covarde - cobarde
> covardia - cobardia
> quatipuru - acatipuru
> quatorze - catorze
> quociente - cociente
> quota - cota
> quotidiano - cotidiano
> quotiliquê - quetilquê ( 'coisa, pessoa de pouca importância;
ninharia )
> quotista - cotista
> quotizar - cotizar
> quotizável - cotizável
> perda - perca (essa última de uso popular, encontrando-se, porém,
> dicionarizada).
> vasculhar - basculhar
> vasculho - basculho ('vassoura de cabo comprido para limpeza de
tetos e
> paredes altas')
>
> Tudo isto devidamente dicionarizado!
> É que a questão ideológica, apesar da roupagem técnica, fala mais
alto.
>
> Rio de Janeiro, 07 de julho de 2003
> Consuelo Alfaro (UFRJ)


























Eduardo Rivail Ribeiro
Department of Linguistics (University of Chicago)
Museu Antropológico (Universidade Federal de Goiás)
http://www.geocities.com/avepalavra

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