[etnolinguistica] Ortografia e ortografias, II

Meira, S. S.Meira at LET.LEIDENUNIV.NL
Sat Jul 12 17:44:37 UTC 2003


 Prezados colegas, 

desculpem o envio da mensagem incompleta à lista! Aqui está a
minha mensagem na íntegra.

Sérgio Meira

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Prezados colegas,

Fico muito contente que esteja ocorrendo uma discussão sobre
sistemas de escrita para línguas indígenas, um assunto de grande
importância e interesse para todos os lingüistas de campo.
Não me considero um grande especialista na área, já que a minha
experiência foi, até agora, pequena. Participei da elaboração
de materiais de alfabetização para os Tiriyó, do norte do Pará, 
e espero poder auxiliar os Bakairi do Mato Grosso na mesma direção;
isso foi tudo. Contudo, ofereço aqui alguns exemplos do tipo de
problemas que encontrei, e teço algumas considerações sobre qual
me parece ter sido o papel dos lingüistas e dos falantes nesses
problemas.

Entre os Tiriyó, a ortografia foi sendo desenvolvida nas décadas
de 60 e 70 por missionários não-lingüistas (franciscanos alemães),
que mudaram de idéia repetidas vezes sobre o melhor jeito de se escrever.
Isso, creio, porque há duas vogais centrais -- um "schwa" e um "i central --
que, por muito tempo, não foram reconhecidos como tais;
e, mesmo depois de reconhecidos, foram escritos inconsistentemente 
(basicamente, parece-me, quando os missionários o ouviam) por um bom
tempo. O resultado desta primeira época parece ter sido (segundo os
relatos dos missionários atuais, comentando a atuação de seus 
predecessores) que, apesar de um entusiástico esforço para ensinar
os Tiriyó a ler em sua língua materna, ninguém conseguiu fazê-lo.
O esforço foi abandonado por algum tempo, até que novos missionários
conseguiram desenvolver um sistema que levava em consideração essas
duas vogais; a partir daí, o esforço foi mais bem-sucedido.

Quando iniciei minha pesquisa de campo junto aos Tiriyó, vi que, 
do ponto de vista segmental, a ortografia em vigor funcionava bem.
O único problema era que a língua possui vogais longas, que ocorrem
com bastante frequencia (em certas palavras, a quantidade vocálica
é o marcador de segunda pessoa, diferenciando-a da terceira; em outras,
ela marca o presente-progressivo, diferenciando-o do passado). 
Lembro-me de um falante (um professor indígena) que entendeu perfeita-
mente o problema quando eu lhe mostrei as palavras em questão.
Disse-me ele então que, em certa ocasião, enquanto lia em voz alta
uma tradução dos envangelhos durante a missa, ele leu erradamente
a palavra escrita "türeke" (="armado"), causando a hilaridade de
todos os presentes em um momento que deveria ter sido sério e reflexivo.
"A gente às vezes não reconhece a palavra com suficiente rapidez", 
disse-me ele. "Mas, se eles tivessem escrito tüüreke, com dois ü, 
não teria havido problema...". (A escrita com dois ü's era a sugestão
que eu estava fazendo a ele.)

Este é, claramente, o tipo de problema que um lingüista pode ajudar
a evitar. Ele pode ajudar na criação de sistemas que diminuam ao
mínimo a necessidade de "reconhecer a palavra com suficiente rapidez"
para não se enganar na pronúncia. Não quero dizer que haja uma 
única possibilidade para cada caso, nem que a teoria fonológica 
da lingüística seja a única resposta para todos os casos (de fato,
a relação entre análise fonológica e ortografia prática me parece
um tópico de pesquisa e reflexão fascinante); mas quero, sim, dizer
que o lingüista pode ajudar a evitar a criação de sistemas que
dificultam a vida do falante. Não é apenas que haja variação na
escrita de algumas poucas palavras, mas sim uma falta de instrumentos
para escrever certos sons que os autores do alfabeto desconsideraram
ou talvez nem chegaram a perceber. As situações mais difíceis, como
o caso das vogais do Karajá que o Eduardo descreve, me faz pensar
em pessoas tentando cortar o tronco de uma árvore com machados de plástico e
papel. Há aqui algo que um lingüista pode ajudar a resolver.

É claro que o lado político da situação também deve ser levado em conta.
Afinal, não é apenas porque um sistema é mais prático ou mais fácil de
usar que ele vai se popularizar. Volto aqui ao caso dos Tiriyó. Em uma
reunião com as lideranças indígenas, eu expus o problema das vogais longas,
apresentando pares mínimos (pedi aos presentes, quase todos mais ou menos
alfabetizados, que os escrevessem, e observei como eles se espantavam que
palavras tão obviamente diferentes parecessem ter a mesma escrita. Alguns
espontaneamente escreveram duas vogais; outros acrescentaram sinais
diacríticos do português. Quando lhes mostrei os resultados, houve uma
preocupação bastante evidente: que fazer com essas palavras? Depois de
alguma discussão, ficou decidido o uso das vogais dobradas. Com o auxílio
dos professores, foi produzida e corrigida uma cartilha.

Contudo, um dos indivíduos mais influentes (o que melhor fala português
entre os Tiriyó) não estava presente na ocasião. Quando ele viu a 
cartilha, já impressa e publicada, não lhe agradaram as vogais dobradas,
que ele considerou "erradas". Como ele tem bastante influência, conseguiu
que fosse declarada "errada" a cartilha. Isso deixou os professores
que haviam participado da confecção e correção com cara de burros. Eles
não gostaram disso, mas tampouco se dispuseram a ir contra a pessoa
em questão. Como resultado, continua ainda em discussão o futuro dessa
cartilha, e da necessidade ou não de se escreverem vogais dobradas em
Tiriyó.

Evidentemente, o aspecto político da situação tem de ser levado em
conta. Em minhas discussões com os Tiriyó, mostro sempre o aspecto
técnico: se as vogais longas forem escritas, o sistema fluirá com
mais rapidez e menos confusões. Mas, se o Tiriyó que não gostou das
vogais longas vencer, é possível que os materiais a serem impressos
sigam o seu ponto de vista e não contenham vogais dobradas. Embora
eu veja isso como uma perda (um sistema que funciona melhor é sempre,
ceteris paribus, mais adequado do que um que funciona menos bem),
e creia que isso implicará em maior esforço para os futuros leitores 
de livros nessa língua, eu também vejo que a questão política -- a
decisão final -- cabe aos índios. Sempre que consultado, mostrarei
as minhas razões; mas, se a conclusão final for que as vogais dobradas
não serão usadas, darei de ombros e aceitarei a decisão. Afinal, é
a língua deles.

É este o papel que eu vejo para o lingüista: o de uma pessoa capaz
de apontar as vantagens e desvantagens de um dado sistema ortográfico
do ponto de vista da fluidez e facilidade do seu uso. Afinal, há 
sistemas ortográficos fáceis e difíceis. O inglês e o francês, por 
exemplo, têm sistemas que impões muitas dificuldades artificiais sobre
as quais os próprios falantes reclamam com freqüência, além de adicionar
problemas desnecessários à aquisição, dificultando desnecessariamente
a tarefa dos professores que transmitem a ortografia às crianças. 
(Menciono, nesse sentido, as referências da mensagem do colega Sidney
Facundes, uma mensagem muito interessante e informativa). É possível
bater um prego na parede com um cabo de faca, mas é melhor fazê-lo 
com um martelo; e é dever do especialista (carpinteiro), se consultado,
informar o não-especialista a respeito. A decisão final, claro está, 
cabe ao não-especialista; afinal, a parede, o prego e a mão são dele.

No caso dos Tiriyós, a situação política também envolve a existência
de dois sistemas ortográficos, como acontece com freqüência em línguas
faladas em áreas fronteiriças (no caso, entre o Brasil e o Suriname).
Missionários diferentes (católicos no Brasil, protestantes no Suriname)
contataram os Tiriyós e acabaram desenvolvendo ortografias diferentes.
As divergências não são enormes (limitam-se a alguns símbolos: o glide
palatal se escreve "y" no Brasil e "j" no Suriname; as vogais centrais 
são "ü" e "ö" no Brasil, "ï" e "ë" no Suriname; etc.). Contudo, os que
usam um sistema tendem a rejeitar o outro como "difícil", "complicado",
"confuso", e são contrários à sua adoção. Sente-se até o começo de uma
diferenciação entre os Tiriyós ("católicos" no Brasil, "protestantes"
no Suriname; expostos à influência da língua portuguesa no Brasil, e à
da língua holandesa e do sranan tongo no Suriname) que se reflete também
nas preferências ortográficas. Do meu ponto de vista (isto é, da facilidade
de uso e fluidez do sistema), parece-me que seria melhor adotar o sistema
surinamense, devido ao fato de que, tendo sido inventado e introduzido
primeiro, já produziu um número bem maior de falantes alfabetizados e
razoavelmente capazes de utilizá-lo, bem como uma certa quantidade de
publicações (livros, materiais de alfabetização, etc.). É isso que explico
aos Tiriyós, sempre que sou consultado a respeito. Contudo, a decisão final
dependerá dos seus próprios mecanismos internos e culturais; se ficar
determinado que a ortografia deve ser diferente para países diferentes,
então assim será.

Em suma, concordo integralmente com as observações na mensagem do Eduardo
sobre a necessidade de se levar em conta a comunidade, suas necessidades
e seus anseios. Creio que o lingüista tem o dever de compreender o melhor
possível os problemas da comunidade, e não impor uma solução derivada
de uma fórmula. O lingüista é um técnico, não um tecnocrata. Ele tem o
dever de indicar onde, segundo o seu conhecimento da língua em questão,
haverá problemas para a escrita, quais as possíveis soluções, e quais as
suas respectivas vantagens e desvantagens. Ele não deve esquecer o contexto
maior, sócio-político-cultural, onde se inserem essas soluções. Ele não deve
tentar perpetuar a sua importância, criando artificialidades que façam da
presença dele, lingüista, uma necessidade eterna (mas o mesmo pode ser dito
sobre pedagogos tecnocratas, ou especialistas em educação indígena
tecnocratas, que queiram inventar estruturas de poder simplesmente para
permanecerem em posições de importância). Todas as pessoas com atividades
desse tipo devem ser criticadas. De fato, eu acho que o assessor-lingüista
em projetos de ortografia tem, como o médico, o dever de desejar que sua
presença se torne menos e menos necessária em um dado projeto com o passar
do tempo. Em forma de aforisma, poder-se-ia dizer que "o melhor sistema
ortográfico é aquele que torna o falante o mais possível independente do
lingüista que o propôs".

Por isso, fico um pouco surpreso com as críticas que vejo na mensagem
do colega Wilmar, e também na da colega Consuelo (bem como nos comentários
do Prof. Aryon Rodrigues). Eles parecem estar reagindo a um lingüista
simplório, panglossiano, que acredita na verdade absoluta da equação
"análise fonêmica = ortografia" e que não leva em consideração a situação
sócio-político-cultural dos falantes da língua em questão, nem tampouco o
que se sabe sobre a história e o funcionamento de sistemas ortográficos e
métodos de educação. Entre os lingüistas de campo que conheço, não creio que
haja um único que defenda um ponto de vista tão ingênuo. Eu acho que a
relação entre a análise fonológica e a melhor ortografia (=de mais fácil
uso) é, de fato, um tópico interessante para pesquisa e reflexão, e não um
ponto passivo e óbvio. Por isso espanto-me um pouco e pergunto a quem o
colega Wilmar atribui tais pontos de vista. 
(As implicações com relação ao trabalho de Luciana Storto, que conheço bem,
me parecem totalmente infundadas; considerando-se o quão intimamente
entrosado foi o trabalho dela com a comunidade Karitiana, só posso concluir
que o colega Wilmar, a despeito de sua experiência na área, não teve nenhum
acesso a informações a esse respeito.) Creio que estamos todos conscientes
de que o sucesso de sistemas ortográficos
é afetado por outros fatores além da sua facilidade de uso, como no caso
Quechua mencionado na mensagem do prof. Aryon Rodrigues. (Por sinal, eu 
pensava que a diferença entre "quichua" e "quechua" refletia reais
diferenças de pronúncia em diferentes variedades do Quechua, e não
simplesmente decisões diferentes quanto a necessidade ou não de se escrever
um dado alofone; estarei enganado?) Sabe-se, creio, que há situações em que
um sistema menos eficiente (menos fácil de usar e ensinar) pode, por outras
razões, ser a melhor solução. Mas isso me parece simples bom-senso,
compartilhado pelos outros lingüistas de campo que conheço (e não só no
Brasil). Quem são, portanto, os lingüistas ingênuos contra os quais brame a
eloqüência do colega Wilmar?

Observo, também, a menção das "reivindicações dos professores indígenas"
nas mensagem de Consuelo e Wilmar. Consuelo menciona que essas mesmas 
reclamações apareciam na retórica dos lingüistas-missionários do SIL, 
para justificar a sua presença nas áreas indígenas. É bem possível que 
isso seja verdade; mas o que dizer das reivindicações por si mesmas?
Se algo é usado como pretexto por alguém para promover os seus fins, isso
não quer dizer que esse algo não exista ou não mereça discussão. É possível
que o fato de os lingüistas-missionários do SIL já terem mencionado
reclamações de falantes sobre as ortografias das suas línguas desde a década
de 70 signifique simplesmente que o problema é antigo, independentemente dos
usos bons ou maus que o SIL tenha querido fazer dele.

Com respeito a tais reclamações, menciono agora um caso Bakairi. Os
falantes desta língua moram em duas áreas indígenas, a A.I. Bakairi,
no município de Paranatinga, e a A.I. Santana, no município de Nobres,
no Estado do Mato Grosso. Já existe uma ortografia para a língua Bakairi,
desenvolvida com os falantes da A.I. Bakairi. Embora ela não seja a melhor
(há três alofones que são escritos com letras separadas), como já há um bom
número de falantes que conhecem e usam razoavelmente bem a ortografia, não
creio que valha a pena lutar por um melhoramento (e, em dois dos três casos,
é até possível que seja realmente melhor escrevê-los como letras separadas,
apesar do seu "status" subfonêmico; tenciono escrever um artigo a respeito).
O problema sério, contudo, advém do fato de que, na A.I. Santana, fala-se um
dialeto bastante divergente do usado na A.I. Bakairi (os dois são comumente
chamados, respectivamente,
"Bakairi Ocidental" e "Bakairi Oriental"). A diferença envolve fonemas que
existem em um dos dialetos mas não no outro, e vice-versa, bem como 
palavras que têm um dado fonema, em um dialeto, mas outro, diferente, 
no outro dialeto. Como os falantes da A.I. Bakairi, mais ativos, foram
os primeiros a conseguirem elaborar materiais em sua língua, só agora
os falantes da A.I. Santana se dão conta da dificuldade que terão se
simplesmente importarem o material feito para seus co-irmãos mais 
afortunados. As diferenças são tais que os professores da A.I. Santana,
tendo de haver-se com a necessidade de decifrar materiais feitos para
a A.I. Bakairi, afirmam que será necessário produzir materiais próprios
para a área. (Eles me dizem que para o meu próprio projeto -- a produção
de um dicionário Bakairí -- será preciso produzir dois livros, um
dicionário de Santana e um dicionário da A.I. Bakairi. Ainda não tenho
certeza de concordar, mas entendo perfeitamente a opinião deles.)

Quando estive em Santana, há coisa de duas semanas, os professores locais
mencionaram o assunto. Em especial, houve reclamações sobre um livro de
textos produzido por professores da A.I. Santana durante o "Projeto 
Tucum", supostamente o primeiro que seria adaptado à realidade do dialeto
falado em Santana. Com os meus conhecimentos incipientes da língua,
propus-lhe ajudá-los a corrigir o livro (uma correção preliminar, já que os
meus conhecimentos da língua Bakairi e de seus dialetos são ainda muito
incipientes). Havia, de fato, muitos erros no livro, de dois tipos 
principais: erros de digitação (p.ex. seqüências de três letras repetidas,
sinais de pontuação como vírgulas, ponto-e-vírgulas, etc., e até números, no
meio de palavras; o "schwa", escrito "â", apareceu com muita freqüência como
"ã", com til; etc.), e erros devidos às diferenças entre os dialetos
(palavras escritas como se pronunciam na A.I. Bakairi, total ou
parcialmente). Os primeiros erros são gráficos, e devem obviamente ser
corrigidos em futuras edições (creio que mesmo o colega Wilmar concordará
com isso). Contudo, eram os erros do segundo tipo que mais preocupavam os
professores, apesar de terem sido eles mesmos que os fizeram, já que haviam
participado da oficina de trabalho do Projeto Tucum. 

A explicação me parece simples. A oficina de trabalho teve lugar na A.I.
Bakairi, onde os professores locais, já mais experientes na escrita, eram
óbvias fontes de referência para os professores de Santana, muito menos
acostumados à escrita em sua língua materna. Como me disse um deles: "Muitas
vezes a gente tinha dúvida sobre como escrever uma palavra, porque ela era
diferente da deles. Mas a gente não sabia o que fazer. Aí eu ia perguntar
pra Dna. Queridinha [uma das professoras da A.I.Bakairi] como ela escrevia.
Ela mostrava pra gente, e a gente copiava." Para dar um exemplo, o
i-central, que existe na A.I. Bakairi e é escrito "y", não existe na A.I.
Santana, onde ele é substituido, geralmente, por um /i/ (mas às vezes por um
"schwa", grafado "â"). Como resultado das cópias, aparece um grande número
de "y"'s no livro de Santana, que são todos pronunciados "i". Se isso fosse
mantido, como muito bem percebeu o mesmo professor, "a gente nunca ia saber
quando escrever 'i' e quando escrever 'y'". Depois de conversarem comigo por
um dia sobre esse livro, os três professores da A.I. Santana concordaram:
tem de escrever tudo com "i", porque "nós não temos aqui essa coisa de 'y'".
Um caso semelhante foi o da oclusão glotal, para o qual não havia letra (já
que, na A.I. Bakairi, a oclusão de Santana corresponde ora a "h", ora a "s",
ora a "x"). No livro, a oclusão era às vezes marcada com um hífen, às vezes
com um acento na vogal, e, mais
freqüentemente, ignorada. Os três professores com quem conversei
declaravam-se muito insatisfeitos com esse fato. "Mas o que é que a gente
pode fazer?" Fiz-lhe a sugestão óbvia: usar um apóstrofo (que eles
apelidaram "separaçãozinha"). Eles pronunciaram então várias frases do
livro, que eu fui reescrevendo com esse apóstrofo (além de substituir os
demais sons que diferiam com respeito à A.I.Bakairi). Os sorrisos logo se
abriram: sim, é isso mesmo, é assim mesmo! Em pouco mais de meia hora, um
dos três professores já estava fazendo a transcrição por si mesmo, em um
caderno. Continuamos até o fim do livro, e também fizemos algumas
"traduções" em uma cartilha de alfabetização feita para a A.I. Bakairi. Os
resultados eram invariavelmente considerados "muito melhores". Ao fim do
dia, o professor que já mencionei estava dizendo que "teria sido muito
melhor se a gente tivesse sabido dessas coisas antes da oficina de trabalho
lá no Pakuera [A.I. Bakairi]".

Não quero dizer que as soluções que encontramos nessa semana serão mesmo
definitivas, ou que não haverá mais problemas (outras diferenças entre os
dois dialetos, etc.) a resolver. Meus conhecimentos da língua em questão
são ainda muito limitados; eu nem sequer consigo falá-la ainda. Mas o 
que dizer das reclamações desses professores? Estão eles errados em dizer
que os materiais da A.I. Bakairi não servem para eles, e que teriam de ser
"decifrados" pelos alunos? Estão errados em desejar uma escrita mais
adequada à sua pronúncia? E quanto à minha atitude: estarei eu impondo,
imperialisticamente, um apóstrofo que eles antes não usavam? Estarei
deixando de levar em consideração a realidade sócio-política, os anseios da
comunidade, etc. e tal? Será a reclamação um mero pretexto? Seria melhor
dizer "escrevam como quiserem, variem à vontade, inventem e misturem mil
soluções, no fim vocês estarão escrevendo, e tudo acabará pelo melhor, no
melhor dos mundos possíveis"? Batam pregos com martelos, cabos de faca,
chaveiros, saltos de sapato, pedras, o que quiserem, no fim, tudo dará
certo? Creio que não. Creio que a minha atitude, nas circunstâncias em
questão, foi a mais acertada. Tanto as reclamações deles, quanto as minhas
sugestões, foram exatamente o que parecem ser: reclamações e sugestões, não
pretextos. Enfatizo: não quero dizer que todos os problemas sejam óbvios e
fáceis, não quero defender nenhuma equação imediatista "fonema = letra", ou
seja lá o que for; mas quero, sim, dizer que há casos fáceis, que podem ser
resolvidos, e que muitas vezes não são apenas porque não há ninguém no lugar
que possa entender e avaliar o problema e propor possíveis soluções. Em
suma, por falta de lingüistas de campo.

O que me leva ao problema da variação, mencionado em detalhes nas mensagens
do colega Wilmar e da colega Consuelo. Sim, é bem verdade que há variações
admitidas na ortografia da língua portuguesa; mas, como bem observa o
Eduardo, tais variações correspondem a diferenças reais de pronúncia. Em
casos como esse, eu tampouco teria a menor dificuldade em propor -- como
proponho no caso de Santana -- que se escrevam as palavras de acordo com a
pronúncia local. Trata-se de uma riqueza da língua, que pode muito bem ser
conservada no sistema de escrita. Um problema muito diferente, e muito mais
sério, advém da variação resultante do fato de que não há, no sistema
proposto, nenhum método para se escrever algum importante -- distintivo --
da pronúncia das palavras (prolongamento, nasalização, tons, ou as vogais
+/-ATR que o Eduardo menciona para o Karajá). Aqui observamos variações que
seriam melhor chamadas "hesitações" ou "dúvidas".

O colega Wilmar cita o exemplo da variação no Galego-Português, que 
perdurou por muito tempo antes que se atingisse uma unificação maior.
Há, nessa variação, fatores dos dois tipos. Há diferenças reais entre
a pronúncia galega e a portuguesa, e entre os seus vários dialetos. 
Havia, conseqüentemente, variação por conta disso (vejam-se os "x"´s
galegos em "xeito" ou "xente", cujos correspondentes sonoros em
português são escritos "jeito" e "gente"). E, de fato, os galegos de
hoje usam uma norma ortográfica diferente para escrever a sua língua,
exatamente porque a sua pronúncia é diferente. Nada de mais nesse caso.

Mas havia também variação provocada pela falta de adequação do sistema.
Como bem sabemos, a escrita das línguas européias foi, de início, uma
adaptação da escrita latina. E o alfabeto latino, muito pobre em letras
para sons fricativos (dispunha apenas de f, s e h), não tinha nenhuma
solução para as nossas chiantes e vogais nasais, bem como para o "nh". 
É nesses sons que se concentra a variação maior observada. Se prestarmos
atenção aos textos antigos, não há variação no uso da vogal "a" (a não
ser quando há real diferença de pronúncia). A letra "a" representava-a
bem, como já representava bem o "a" latino, e, portanto, não variou.
Ao invés de mencionar o quanto o sistema galego-português variava,
eu preferiria mencionar o quanto certas partes desse sistema, como o 
"a", não variavam, e perguntar: se as pessoas simplesmente não davam
a mínima para o sistema de escrita, por que não havia com o "a" tanta 
variação quanto em outros lugares? Não seria porque, ceteris paribus,
é melhor usar uma solução simples e que funciona do que inventar
variações desnecessárias? Afinal, é mesmo melhor bater um prego com um
martelo; quando se dispõe de um, nada mais natural do que usá-lo.

(Um outro fator complicante, independente, era a tendência a imitar
a ortografia latina, mais prestigiosa, mesmo quando esta diferisse da
pronúncia portuguesa. Nesse caso, a variação dependia muito do grau
de conhecimento que um dado usuário da língua escrita tivesse da
língua latina. Isso incluía fatores adicionais.)

Assim como os professores de Santana, os primeiros a escrever em
língua portuguesa também inventaram soluções ad-hoc para os problemas
com que se deparavam. Para uma dada palavra difícil, eles podiam
substituir um termo latino ou copiar-lhe a ortografia, ou então podiam
copiar uma solução já existente em alguma outra língua já escrita (os
nossos nh's e lh's, por exemplo, vêm do provençal), ou podiam improvisar.
No caso dos professores, isso provocou desconforto. No caso dos antigos
galego-portugueses, nem tanto; como observa o colega Wilmar, foram 
necessários séculos para que as soluções se estabilizassem, e, nesse
meio tempo, ninguém parecia reclamar. Gostaria de sugerir uma possível
explicação: os professores de Santana sentem, ao escrever, a diferença
entre as dúvidas que eles têm sobre como pôr no papel as palavras que
eles falam, e a maior segurança que os professores da A.I.Bakairi
monstram na escrita das suas palavras. Na idade média, não havia, com
exceção da língua latina, nenhuma língua que tivesse o mesmo grau 
de estabilidade. De fato, é interessante que, por muito tempo, se
tenha considerado a língua latina como paradigma de perfeição, única
apta a servir de instrumento para a discussão de assuntos sérios, 
filosóficos, científicos, políticos. E uma das razões (mencionada,
se não me engano -- estou falando de memória, por isso peço que
confiram -- por Dante no De Vulgari Eloquentia) era que a escrita da
língua latina era única, enquanto que a das "linguas vulgares"
variava incansavelmente. De modo que talvez tenha havido, sim, algum
sentimento de inferioridade exatamente devido às inconsistências
ortográficas. 

De qualquer maneira, a situação, hoje em dia, é bem diferente da 
que reinava no século XIV. Manter inconsistências desnecessárias em
línguas indígenas iria simplesmente repetir a situação das línguas
vulgares ou vernáculas frente ao latim; para quê fazer isso? Claro
está que, se for o desejo dos falantes, assim será. Se, por exemplo,
eles disso auferirem alguma vantagem política, por exemplo o distanciamento
com respeito à padronização do português, então assim será. Se os falantes
de pirahã realmente não desejam que se escreva na sua língua, como relata
Dan Everett, então não se escreverá. E se os falantes do dialeto Bakairi de
Santana quiserem que haja várias soluções em competição para um mesmo
problema ortográfico, assim também o será.
Por minha parte, explicarei sempre as desvantagens de deixar o sistema
fluido; mas, se assim o quiserem, assim será. Mas, francamente, quando
vejo o deleite com que os professores olhavam para as soluções dos
problemas do seu dialeto, não creio que haverá desejo de inconsistências.

Bem, esta mensagem já ficou muito mais longa do que deveria ser. Peço
desculpas se tiver cansado vocês. E desejo continuar vendo mensagens
interessantes e instigantes nessa discussão, muito necessária, sobre
as ortografias indígenas.

Cordialmente,

Sérgio Meira

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