[etnolinguistica] Imprensa: Lévi-Strauss e o Brasil

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Thu Feb 24 07:41:47 UTC 2005


Entrevista de Claude Lévi-Strauss ao jornal Le Monde (21/fev/05). A versão em português é reproduzida do JC E-mail (22/fev/05).

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Lévi-Strauss: ‘Brasil representa a experiência mais importante da minha vida’
Para etnólogo, fundação da USP reatou laços do país com a França

Véronique Mortaigne escreve para ‘Le Monde’:

Às vésperas do Ano do Brasil, a série de celebrações do ‘país da madeira de brasa’ na França, o autor de ‘Tristes Tropiques’ voltar a comentar a sua relação essencial com este país, onde ele iniciou a sua carreira de etnólogo.

Claude Lévi-Strauss, nascido em 1908 em Bruxelas (capital da Bélgica), sublinha em entrevista ao Le Monde que a civilização em escala mundial decretou o fim deste tipo de pesquisa e de descoberta.

Confira a entrevista:

Não seria a imbricação da França com o Brasil uma relação muito antiga?

Este Ano do Brasil acontece quase exatamente quinhentos anos após o primeiro contato entre a França e o Brasil, o qual ocorreu por ocasião da viagem do explorador normando Paulmier de Gonneville. Este último alcançou, em 1504, o litoral sul do Brasil, quatro anos apenas depois do português Pedro Alvares Cabral, que havia desembarcado no país perto de Salvador da Bahia. Além disso, os relatos os mais antigos que nós possuímos sobre o Brasil datam do século 16 e são franceses. Em 1555, houve a empreitada do almirante Villegaignon, que tinha por objetivo implantar uma França antarctica, conforme foi relatado por André Thevet no seu grande livro, ‘Les Singularitez de la France Antarctique’ (As Singularidades da França Antarctica), publicado em 1557. Em 1578, Jean de Léry publicou a ‘História de uma viagem realizada pela terra do Brasil’. Então, no século 17, houve, mais ao norte, as tentativas de instalação de missionários. Mais tarde, no século 18 e no início do século 19, quando o
 Brasil se tornou um império, foi registrada a presença de pintores franceses --a missão artística que foi enviada a partir de 1815 por Louis 18, na qual figurava, entre outros, Jean-Baptiste Debret--, que nos deixou muitas ilustrações daquilo que era então a vida no Rio de Janeiro e no interior do país. É claro, houve conflitos entre a França e o Brasil, por exemplo, em torno dos territórios vizinhos da Guiana Francesa, os quais eram reivindicados pelos dois países. Mas a fundação da Universidade de São Paulo, no século 20, permitiu reatar contatos muito estreitos.

Foi precisamente na Universidade de São Paulo que o senhor passou a ensinar a sociologia, já em 1935. O que significa o Brasil para o senhor, hoje?

O Brasil representa a experiência a mais importante da minha vida, ao mesmo tempo por causa da grande distância, do contraste, mas também porque ele determinou a minha carreira. Eu considero ter uma dívida muito profunda para com este país. Mesmo assim, eu deixei o Brasil no início do ano de 1939, e só fui revê-lo muito rapidamente em 1985, quando eu acompanhei o presidente François Mitterrand, quando este nele foi fazer uma visita de Estado de cinco dias. Embora ela tivesse sido muito breve, essa estada provocou em mim uma verdadeira revolução mental: o Brasil havia se tornado, inteiramente, totalmente, um outro país. Esta São Paulo, que eu havia conhecido numa época em que ela contava apenas 1 milhão de habitantes, já recenseava mais de 10 milhões deles. Os sinais e os vestígios da época colonial haviam desaparecido. São Paulo havia se tornado uma cidade bastante assustadora, apinhada de torres numa extensão de quilômetros, a tal ponto que, curioso por rever não a casa onde eu
 havia morado --ela provavelmente não existia mais--, e sim a rua onde eu havia vivido durante alguns anos, eu passei uma manhã inteira, bloqueado no meio de engarrafamentos, sem conseguir chegar ao meu destino.

A urbanização de São Paulo fez desaparecer desta cidade a natureza; o rio Tietê, que foi fundamental para a conquista do interior do Brasil a partir de São Paulo, está moribundo... Este relaxamento dos vínculos entre o homem e a natureza não seria uma característica da nossa época?

Mesmo do meu tempo, a natureza de São Paulo já havia sido profundamente alterada. Na época, o ciclo do café já havia acontecido, e todos os territórios nas cercanias da cidade haviam sido dedicados a esta indústria agro alimentícia. Mas, dessa natureza tão forte, ainda subsistiam as encostas da Serra do Mar, entre São Paulo e o porto de Santos. Naquela região, numa extensão de alguns quilômetros, havia um desnivelado de 800 metros, tão abrupta que a civilização havia menosprezado o lugar, o que permitiu preservar a mata virgem. De tal forma que, quando se desembarcava em Santos para subir a serra até São Paulo, era possível ter um contato curto, porém imediato, com aquilo que o Brasil do interior, a milhares de quilômetros dali, podia ainda nos reservar. O vínculo entre o homem e a natureza talvez tivesse se rompido e, ao mesmo tempo, é possível entender que o Brasil, que se desenvolveu de uma maneira tão considerável, tenha em relação à natureza a mesma política que a Europa
 praticava na Idade Média, isto é, destruí-la para implantar uma agricultura.

O senhor chegou a retornar nas regiões onde moram os seus amigos, os índios caduveos, bororós ou nhambiquaras, que o senhor estudou no Brasil?

Em 1985, Brasília era uma das etapas da viagem presidencial. O jornal ‘O Estado de S. Paulo’ ofereceu-me levar-me de volta até a reserva dos índios bororos. Esta viagem havia sido muito cara e penosa em 1935, mas, de avião, ela poderia ser feitas em algumas horas. Portanto, nós embarcamos num dia de manhã dentro de um pequeno avião que só poderia transportar três passageiros: a minha mulher, uma colega brasileira e eu. O avião sobrevoou os territórios dos bororos, e nós conseguimos até mesmo entrever algumas aldeias que ainda possuíam aquela sua estrutura circular característica, embora todas elas já estivessem, naquela altura, dotadas de um terreno de pouso. Então, após termos sobrevoado todas elas, o piloto nos disse: eu poderia aterrissar em qualquer uma, mas as pistas são tão curtas que eu não tenho certeza de que nós consigamos repartir! Portanto, nós desistimos, e retornamos a Brasília, não sem termos enfrentado na volta um temporal terrível. Eu cheguei a pensar que a nossa
 vida nunca havia corrido tantos riscos, mesmo na época das minhas expedições. Finalmente, nós conseguimos chegar a tempo para que a minha mulher pudesse enfiar um vestido de noite e eu um smoking, de modo a podermos participar do grande jantar que foi oferecido pelo presidente do Brasil ao presidente francês. Tudo isso mostrava o quanto este país havia mudado. Com isso, eu não pude rever os bororos em carne e osso, mas eu pude rever o seu território; sobrevoei esse Rio Vermelho, um afluente do rio Paraguai. Nele, eu havia levado vários dias até conseguir alcançar a nascente, de piroga, e eu constatei que havia agora uma estrada asfaltada na sua ribanceira.

É possível tornar-se marcado fisicamente e para sempre por um país?

Com certeza. O meu primeiro choque, ao chegar ao Brasil, como eu já lhe disse, foi a natureza, tal como ela ainda podia ser contemplada nas encostas da Serra do Mar; mais tarde, quando eu conseguir adentrar no interior do país, voltei a ter esse contato com a natureza, a qual já era totalmente diferente daquela que eu havia conhecido... Mas há também uma dimensão para a qual nem sempre se presta a atenção como se deveria, e que para mim foi capital: a do fenômeno urbano. Quando eu cheguei e São Paulo, as pessoas diziam que nela se construía uma casa a cada hora. E, naquela época, havia uma companhia britânica que, já fazia quatro ou cinco anos apenas, desbravava os territórios a oeste do Estado de São Paulo. Ela construía uma ferrovia e implantava uma cidade a cada 15 quilômetros. Na primeira destas cidades, a mais antiga, havia 15 mil habitantes, na segunda 5 mil, na terceira mil, na seguinte 90, depois 40, e, na mais recente, 1 único habitante --que era um francês. Naquela época,
 um dos grandes privilégios do Brasil era de poder assistir, de maneira praticamente experimental, à formação desse fantástico fenômeno humano que é o desenvolvimento de uma cidade. No nosso país, a cidade resulta, de fato, em certos casos, de uma decisão do Estado, mas é, sobretudo, o fruto de milhões de pequenas iniciativas individuais que foram sendo tomadas ao longo dos séculos. No Brasil dos anos 1930, era possível observar este processo se desenvolvendo de maneira mais curta, no período de poucos anos. É claro que, uma vez que eu praticava a etnografia, os índios foram essenciais para mim, mas esta experiência urbana também teve uma importância considerável, e os dois Brasis coexistiam, mantendo, contudo, uma boa distância um em relação ao outro. Quando fui visitar o Mato Grosso pela primeira vez, Brasília ainda não existia, mas houvera uma primeira tentativa de fundar uma cidade a partir do nada, Goiânia, que, na época, não deu certo. O Planalto Central é magnífico: nele, o
 céu adquire uma enorme importância. Trata-se de uma ordem de grandeza totalmente diferente. Vários romancistas, tais como Euclides da Cunha --autor de ‘Os Sertões’, que foi traduzido em francês sob o título de ‘Hautes Terres’ (Altas Terras)-- descreveram de maneira magnífica este Brasil. Também conheci muito bem Mario de Andrade --um musicólogo, poeta, fundador da Sociedade de Etnografia e de Folclore do Brasil. Ele dirigia o departamento cultural da cidade de São Paulo. Nós fomos muito amigos. O seu romance mais importante, ‘Macunaíma’, é um grande livro.

Mario de Andrade havia imaginado com muito humor Macunaíma, um índio tapanhuma da Amazônia bastante mentiroso e preguiçoso que se tornara por efeito do seu casamento o imperador da selva virgem. Um dia, ele desembarcou na cidade de São Paulo para recuperar um amuleto, antes de ser transformado numa constelação --a Grande Ursa. Este espírito indígena, este vínculo entre a cidade, a selva e o mito, será que ele conseguiu perdurar? O senhor chegou a acompanhar a sua evolução?

Eu acompanho a evolução dos indígenas que eu havia então estudado de maneira muito regular. Isso se dá por meio do pensamento, e graças aos meus colegas muito mais jovens do que eu, principalmente os da Universidade de Cuiabá, no Mato Grosso, que trabalham, entre outras, nas tribos nhambiquaras. Eles me escrevem, me enviam regularmente os seus estudos. Esses povos passaram por sofrimentos terríveis. Eles foram mais ou menos exterminados, a ponto que apenas 5% ou 10% da população que existia inicialmente conseguiram subsistir. Contudo, o que está acontecendo atualmente é de um interesse imenso. Esses povos estabeleceram contatos uns com os outros. Eles estão cientes desde então de algo que eles haviam ignorado por tanto tempo: eles não são mais sozinhos na cena do Universo. Na Nova Zelândia, na Austrália ou na Melanésia existem pessoas que, em épocas diferentes, foram submetidas às mesmas provas do que eles. Eles tomaram consciência, portanto, da sua posição comum dentro do mundo.
 Então, como se pode deduzir de tudo isso, a etnografia nunca mais será igual àquela que eu pude ainda praticar do meu tempo, quando se tratava de encontrar testemunhas de crenças, de formações sociais, de instituições nascidas num completo isolamento em relação às nossas, e que constituíam, portanto, contribuições insubstituíveis para o patrimonial da humanidade. Atualmente, nós alcançamos, de certa forma, um regime de ‘compenetração mútua’. Nós estamos caminhando rumo a uma civilização na escala mundial, na qual, provavelmente aparecerão diferenças --ao menos, é de se esperar que isso ocorra. Mas essas diferenças não serão mais da mesma natureza; elas serão internas, e não mais externas.

A velocidade dos deslocamentos, a velocidade da propagação das culturas, da comunicação, constituem fatores determinantes...

No passado, nós viajávamos, os meus colegas e eu, em navios cargueiros mistos que, após um grande número de escalas, demoravam 19 dias para chegar até a América do Sul. Eles paravam em muitos pontos do litoral espanhol, argelino, e da África Ocidental. Aliás, da África eu só conheço verdadeiramente os lugares onde esses navios paravam na ida e na volta das minhas viagens ao Brasil.

Será que a fotografia, que o senhor praticou, conforme demonstram os seus numerosos retratos que foram publicados, pode fixar esses mundos perdidos?

Eu nunca atribuí muita importância à fotografia. Eu fotografava porque isso era necessário, mas sempre com o sentimento de que isso representava uma perda de tempo, uma perda de atenção. Contudo, eu sempre gostara muito da fotografia, que eu havia praticado bastante durante a minha adolescência. O meu pai era um artista pintor, ele também mexia muito com foto. Mas a fotografia constitui uma profissão à parte, para dizer assim. O que eu fiz foi um trabalho de fotógrafo na estaca zero. Eu publiquei um livro de fotos, ‘Saudades do Brasil’, um título que pode ser traduzido como ‘Nostalgia do Brasil’, que foi editado em 1994 --isso porque as pessoas em minha volta insistiram muito. O editor escolheu um pouco menos de 200 retratos em meio a tantos outros. Por ocasião da minha primeira expedição ao encontro dos bororós, eu havia levado comigo uma câmera filmadora portátil muito pequena. E ocorreu-me de vez em quando de apertar no botão e de produzir algumas imagens, mas eu não demorei a
 ficar enfastiado com isso, uma vez que, quando você está com o olho grudado por trás da objetiva de uma câmera, você não vê o que está acontecendo e entende ainda menos os acontecimentos. Desta experiência, sobraram alguns trechos que, no total, resultaram em cerca de uma hora de pedaços de filmes. Estas imagens foram encontradas no Brasil, onde eu as havia abandonado, e foram exibidas, numa oportunidade, no Centro Pompidou. Aliás, vou confessar-lhe uma coisa: os filmes etnológicos me deixam profundamente entediado.

O senhor é um amante da música. Mythologiques’ (Mitológicas) começa com uma abertura e conclui-se com um movimento final. Em ‘O Cru e o Cozido’, o primeiro dos quatro volumes de ‘Mythologiques’, o seu começa relatando um canto bororó - o canto do caçador de pássaros. O senhor chegou a analisar a sua música?

Não, de maneira alguma, eu não sou um etnomusicólogo; eu não estudei os seus cantos. Em certos casos, eles me impressionaram, e em outros, eles me comoveram. Aliás, uma das minhas primeiras emoções foram as cerimônias que se davam quando eu cheguei à tribo dos bororos. Eles acompanhavam e ritmavam os seus cantos por meio de chocalhos que eles manipulavam com tanto virtuosismo quanto um grande chefe de orquestra pode fazer com a sua batuta. Acontece que, meses atrás recebi a visita de dois índios bororos, que estavam acompanhados por dois pesquisadores da Universidade de Campo Grande, do Mato Grosso, a mais próxima do seu território, e onde eles mesmos lecionavam. Eles quiseram, no meu escritório do Collège de France, por sua própria iniciativa, cantar e dançar para mim. Pois então, o que constitui precisamente um desses paradoxos no meio dos quais nós vivemos, esses colegas bororos haviam conservado com toda a sua espontaneidade e toda a sua autenticidade os cantos e uma música que
 eu havia ouvidos setenta anos antes. Foi muito comovente. Dito isso, a música é o maior mistério ao qual nós estejamos confrontados. A música popular brasileira, do meu tempo, era, por sinal, extremamente saborosa.

O que o senhor diria do futuro?

Não me pergunte nada desse tipo. Nós estamos num mundo ao qual eu já não pertenço mais. Aquele que eu conheci, aquele que eu amei, tinha 1,5 bilhão de habitantes. O mundo atual conta 6 bilhões de humanos. Ele não é mais o meu. E aquele de amanhã, que estará povoado por 9 bilhões de homens e de mulheres --mesmo que esta seja uma estimativa máxima de população, conforme nos garantem para nos consolar - me impede arriscar toda e qualquer previsão...


(Tradução: Jean-Yves de Neufville)
(UOL Mídia Global, 22/2)






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