M úsica, poes ia e vitalidade lingüística

Flávia de Castro Alves pahno at TERRA.COM.BR
Wed Sep 14 14:46:35 UTC 2005


Querido Eduardo,
 
não sei se vou colaborar com as suas questões. De qualquer forma, como você fez referência ao texto do missionário Jack Popjes (sobre a música Canela), achei o momento realmente oportuno para citar o texto da musicóloga Kilza Setti (sobre a música dos povos Timbira, entre eles os Canela).
 
Antes alguns esclarecimentos:
 
1) a unidade utilizada aqui ‘povos Timbira’ é determinada por fatores políticos e sociais, a qual é adotada pela Associação Wy’ty Catë das Comunidades Timbira do Maranhão e Tocantins, uma associação indígena que representa seis povos Timbira (Krahô, Apinajé, Kr~ikatí, Gavião (Pykobjê), Canela Apãniekrá e Canela Ramkokamekrá) e que surgiu junto com a implantação do Projeto Frutos do Cerrado, em 1993;
 
2) o texto transcrito abaixo é parte do encarte do CD triplo AMJËK~IN Música dos Povos Timbira, e pode ser adquirido via contato com a ONG Centro de Trabalho Indigenista (CTI), www.trabalhoindigenista.org.br . O CTI desenvolve com os povos Timbira um Programa de Educação cuja proposta é contribuir para a manutenção de práticas sócio-culturais desses povos indígenas, capacitando-os para que elaborem e promovam seus próprios projetos de futuro numa perspectiva de respeito à diversidade cultural.
 
Só como uma sugestão (ou um sonho?), acho que seria bem interessante dar uma olhada se esses diálogos etnopoéticos não se dão sobretudo ENTRE os povos indígenas, e mais especificamente entre os Macro-Jê e os Jê. Isso é muito forte entre os Timbira, mas não saberia dizer em relação aos outros povos Jê e Macro-Jê. Enfim, um estudo etnopoético comparativo seria simplesmente fascinante... E como já escreveu Anthony Seeger sobre os Suyá (Jê) ‘Oratory is spoken, myth is told, and song is sung, but they are all music to my ears’ (In Sherzer, J. & Urban, G. (eds) (1986) Native South American Discourse. Berlin/NY/Amsterdam: Mounton de Gruyter).
 
Grande abraço,
Flávia
pahno at terra.com.br
 
Segue então o texto de Kilza Setti:
 
‘Resultado de projeto mais amplo, o Arquivo Musical Timbira, este CD triplo é apenas amostra do riquíssimo repertório dos índios Timbira. Foram aqui reunidos pequenos fragmentos sonoros que, para além do valor musical, reforçam e consolidam a unidade lingüística e cultural desses povos indígenas do Maranhão e Tocantins. As gravações incluídas nestes CDs foram feitas numa única semana, durante o I Encontro de Cantadores Timbira, realizado em fevereiro de 2004 pelo Centro de Trabalho Indigenista (CTI), e Associação Wy’ty Catë das Comunidades Timbira do Maranhão e Tocantins, com patrocínio da Petrobrás.
 
Esse Encontro permitiu a comprovação das afinidades culturais e da forte coesão de identidade entre os diversos grupos Timbira. Língua e música são sistemas ativos e dinâmicos na vida das aldeias. A música Timbira, praticada diariamente, se estende pelas madrugadas, num fascinante continuum sonoro. Apesar de algumas nuanças lingüísticas e musicais das cantigas próprias a cada grupo e caracterizada pelos Timbira como “diferentes sotaques”, o Encontro reuniu surpreendentes performances conjuntas e possibilitou a identificação de uma unidade musical Timbira. Isso porque o repertório de cantigas circula num movimento de intercâmbio entre as aldeias.
 
Os Timbira são povos essencialmente dedicados ao cultivo da voz. Esse fato leva a comentar alguns procedimentos vocais freqüentes nas cantigas como: a expressividade dos solos, com diferentes inflexões de voz; o esmerado controle da dinâmica (que indica no mundo ocidental as variações de volume sonoro); as amplas pausas – que sublimam e valorizam linhas melódicas; a manutenção de centros tonais onde melodias se constroem; a variedade de formações vocais que incluem belos duetos entre cantador (responsável por iniciar e conduzir os cantos) e mandador (cuja função é animar os cantadores com interjeições de encorajamento); o uso do canto responsorial freqüente entre solos vocais e coro das mulheres (hõcrëpöj); os portamentos vocais ascendentes e descendentes; o paralelismo quase que sistematizado no coral das hõcrëpöj com uso de variados intervalos e microtons que instalam extraordinárias polifonias; os interessantes desenhos dos contrpontos vocais a duas, três ou mais vozes; os hoquetos (soluços) que marcam a feição de alguns cantadores; o estilo narrativo nos cantos solistas de melodia infinita; os vibratos, acentos e apojaturas vocais; a tendência à elevação do campo sonoro em meio e até um tom acima da melodia inicial; os cantos de desafio ou embates cantados; o encadeamento das seqüências de cantigas, organizadas em diferentes e intercalados andamentos; os expressivos solos recitativos de introdução; o som ostinato sustentado pelo coro uníssono das mulheres que em certos momentos cria uma atmosfera quase que litúrgica. Enfim, há uma lógica que rege essa atividade musical e que inspira estudos aprofundados.
 
O desempenho instrumental é relevante também como elemento de apoio rítmico e de chamamento: chocalhos s sistros (respectivamente cö’tõj e xy), ocarinas (cö’kõnre, hõhëre) e buzinas (hõhë, pëtw`y). Como em outros sistemas musicais, os instrumentos Timbira desenvolvem funções específicas, sobretudo de animação e fixação de medida. Para haver mesmo uma sintaxe que organiza e fixa diferentes procedimentos para cada momento das performances.
 
Do ponto de vista da Antropologia da Música, assinalam-se elementos extra-musicais, porém vigentes na atividade musical. Esses elementos fornecem bases para a contextualização das músicas. Há períodos, locais, situações e atribuições para desempenho de cada cantiga. Há cantigas de pátio, cantigas próprias de cada rito, cantigas-convite, cantigas de animação, cantigas da madrugada, da noite, cantiga só das mulheres ou só dos homens. São padrões construídos pela continuidade do saber.
 
Os Timbira estão seguros de seus critérios e valores estéticos, e mostram extrema sensibilidade na percepção de timbres sonoros. Aos músicos atribuem-se papéis bem definidos: além do cantador, do mandador ou animador e das hõcrëpöj, há a categoria dos enfrentantes (que guiam e sustentam o canto coletivo). São observadas normas sobre o uso adequado dos instrumentos em cada cantiga, com diferentes desenhos rítmico-melódicos, e as ocasiões em que devem ou não acompanhar a música vocal. Como já registrado em outros povos indígenas do Brasil, também com os Timbira parece se confirmar o papel extra-musical do cö’tõj (maracá), quando a este se referem à cabeça de um antepassado.
 
Neste CD estão presentes mostras de cantos rituais como os do Këtwajë (rito de iniciação dos jovens para a vida adulta), Wy’ty (rito de recebimento ou entrega de dignidade ritual), P?pkah`yc (segunda etapa do rito de iniciação masculina), P`yrkah`yc (rito de final do luto), pequenos trechos de cantigas de ninar, de festas, de caçada, entre outros. A música Timbira é muito mais do que está contido nesses fragmentos. Examinado em profundidade, esse brilhante universo sonoro se mostrará altamente requintado e permitirá análises musicológicas de expressivo valor científico.
 
Cabe assinalar aqui a importante presença dos Timbira no I Encontro de Cantadores, seu empenho e auxílio nas análises posteriores durante as oficinas de música. Tais análises, se elaboradas apenas pela percepção de profissionais da Etnomusicologia, poderiam deixar escapar expressivos elementos extra-musicais contidos nas cantigas. A participação de cantadores e pesquisadores Timbira lhes dá crédito de co-autores na tradução dos textos complementares do encarte deste CD, além de garantir a visão êmica, indispensável para uma compreensão abrangente de seus repertórios rituais. ’
 
Kilza Setti
Agosto de 2004
 
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