Imprensa: "A última falante viva de xipaia"

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Sun Sep 3 00:14:29 UTC 2006


Matéria publicada na revista *Época* (Edição 431, ago/06). Além do Xipaya, a
matéria menciona o Araweté. Entre os entrevistados estão, além de Maria
Xipaya, os lingüistas Carmem Lúcia Rodrigues (UFPA), Aryon Rodrigues (UnB) e
Denny Moore (Museu Goeldi). O conteúdo integral da matéria (incluindo fotos
e vídeo) pode ser acessado no seguinte endereço:

http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG75091-6014-431,00.html

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*A última falante viva de xipaia*

*Quando Maria morrer, a língua de seus ancestrais estará morta. Dá para
salvar um
idioma da extinção?*

Tânia Nogueira (texto)
Frederic Jean (fotos), De Altamira

Na língua dos índios xipaia não há uma palavra para designar "ano". Essa
unidade de tempo não existe na cultura da tribo. Por causa disso, Maria
Xipáya nem sabe quantos anos tem. Na carteira de identidade que ganhou da
Funai, a data de nascimento é 19 de abril de 1928. (Quando não se sabe o dia
do aniversário, é padrão na entidade atribuir uma data aproximada. No caso
dela, o Dia do Índio.) Maria mora numa casa localizada num bairro simples da
cidade paraense de Altamira. Ela é a última falante viva de um idioma que
está morrendo. Não tem ninguém com quem conversar em sua língua materna. Os
demais xipaias já esqueceram boa parte do idioma.

"Quando eu morrer, morre comigo um certo modo de ver", escreveu o poeta
Carlos Drummond de Andrade em um de seus poemas mais famosos, "Desfile". A
frase, válida para seres humanos, serve também para idiomas. Quando morre
uma língua, grande parte da cultura associada a ela desaparece. "Cada língua
é uma cultura e uma visão de mundo", diz Aryon Dall'Igna Rodrigues,
coordenador do laboratório de Línguas Indígenas da Universidade de Brasília
(UnB) e um dos maiores especialistas brasileiros no assunto. Não é à toa
que, em grego, uma mesma palavra - logos - significa linguagem e pensamento.


As línguas costumam morrer em silêncio. O principal sinal de envelhecimento
é deixarem de ser ensinadas às novas gerações. Quando isso acontece, o final
é quase irreversível. "Qualquer língua que não seja mais transmitida às
crianças está em situação crítica", diz Aryon Rodrigues. Antropólogos e
lingüistas acreditam que, se nada for feito, algo entre 50% e 90% das cerca
de 6 mil línguas faladas no planeta vão desaparecer neste século. Quando
Cabral chegou ao Brasil, a população de índios era de 6 milhões a 10 milhões
segundo estimativas. Hoje, calcula-se que são 170 mil. Em 1500, os índios
falavam cerca de 1.300 línguas. Sobraram 181.

As línguas deixam de ser usadas quando seus falantes não precisam mais dela.
Quem impede o desaparecimento completo de uma língua salva toda uma cultura
e uma visão de mundo. s Os esquimós usam palavras diferentes para se referir
a tonalidades de branco imperceptíveis para quem não vive na região Ártica.
Se eles desaparecessem, essa diversidade cultural também sumiria. Por isso,
um idioma salvo da extinção é motivo para comemorar.

No Brasil, salvar idiomas é especialmente importante dada a biodiversidade
lingüística do país. Enquanto na Austrália os 200 idiomas indígenas
catalogados são todos variações de uma única família, por aqui há várias
famílias independentes. A maior parte delas pertence a dois troncos
principais, o tupi e o macro-jê. A língua xipaia pertence ao tronco tupi.

Os xipaias deixaram de utilizar seu idioma quando abandonaram a tribo para
viver na cidade. Recentemente, a Funai demarcou as terras dos xipaias e
alguns deles voltaram a morar no mato. A aldeia fica a dez dias de barco de
Altamira. Para lá seguiram 36 índios da etnia, nenhum deles com fluência no
idioma nativo.

Alguns lembram de uma palavra ou outra, como os parentes mais próximos de
Maria. Duas de suas primas, Izabel e Odete, se recordam de algumas frases em
xipaia. Um amigo, João, conhece nomes de bichos e plantas na floresta. Mas
isso seria insuficiente para manter um diálogo, caso eles se encontrassem
com freqüência. Como são idosos, os quatro dificilmente saem de casa e se
vêem pouco. Os filhos, netos e bisnetos de Maria não falam o idioma
ancestral.

Embora seja difícil impedir a morte de uma língua, é possível evitar sua
extinção. O latim é uma língua morta, pois não é mais falado. Mas não está
extinto. Restam textos latinos que ainda são estudados e preservam a cultura
que deu origem a vários idiomas vivos. Da mesma forma, o xipaia pode morrer,
mas não será extinto. Desde 1988, a professora de Lingüística da
Universidade Federal do Pará (UFPA) Carmen Lúcia Reis Rodrigues trabalha ao
lado de Maria Xipáya. Ela registra o vocabulário, presta atenção a nuances
fonéticas, tenta entender as regras gramaticais e está criando uma
ortografia para o idioma. Ainda neste ano, Carmen pretende finalizar um
dicionário. O xipaia era dado como extinto até os anos 80. Foi quando
Carmen, então estagiária do Museu Paraense Emílio Goeldi, e o lingüista
americano Denys Moore descobriram Maria e viram uma oportunidade de salvar o
idioma de seus ancestrais.

O nome xipaia aparece em relatos dos primeiros missionários e viajantes que
chegaram à região dos rios Xingu, Iriri e Curuá, no Pará, no século XVII. Em
2002, eram apenas 595 pessoas. A família de Maria parece pertencer a um
grupo que se manteve relativamente afastado dos costumes dos brancos. Ela
afirma que, até o dia s de seu primeiro casamento, jamais tinha entrado numa
igreja e que, até então, não era batizada. O tio de Maria, Durica, era o
pajé da tribo. Sua filha, Izabel, prima de Maria, afirma que costumava vê-lo
incorporando espíritos e fazendo suas curas. Uma vez Maria diz que passava
muito mal do estômago. O pajé foi chamado e disse que ela tinha ingerido a
comida de uma panela que ficara aberta durante a noite. "O bicho da
escuridão tinha cuspido lá dentro", diz ela. Ela afirma que, depois das
rezas e dos remédios do tio, ficou boa.

Na época do Ciclo da Borracha, no século XIX, e durante a Segunda Guerra
Mundial, os seringueiros usaram os xipaias e os curuaias, outra tribo da
região, como guardas dos assentamentos de seringueiros na selva. Foi aí que
começou o contato com a cultura dos brancos. Quando criança, Maria diz que
se fascinava com o modo de vida dos que falavam português: "Eu achava
bonito. Aquelas roupas limpinhas, branquinhas, tudo arrumado. As meninas me
chamavam para ajudar a lavar roupa. Eu adorava. Queria que minha mãe fosse
como a mãe delas, que não comesse na folha de bananeira e depois jogasse no
meio do mato".

O chamado da civilização parecia irresistível. Depois da folha de bananeira,
a jovem Maria foi, aos poucos, desprezando os trajes tradicionais, as
pinturas indígenas, as danças e, por fim, o próprio idioma. Quando seus
filhos nasceram, ela não se preocupou em passar a língua do pai ou da mãe
para eles. Hoje se diz arrependida e se esforça ao máximo para alimentar a
pesquisadora com dados sobre o idioma xipaia.

Sempre que Carmen Rodrigues consegue se deslocar de Belém a Altamira, o que
não é tão freqüente, Maria passa as tardes com ela gravando histórias,
identificando palavras, repassando textos, lembrando de canções de sua
aldeia. À noite, quando tudo se aquieta, ela diz lutar para recapturar as
palavras de mitos narrados pelo pai, as letras de músicas cantadas em torno
do fogo, um diálogo qualquer perdido na memória.

Salvar uma língua indígena da extinção é um desafio complexo. É necessário
estabelecer uma ortografia para ela, já que esses idiomas são orais. É
desejável também que se estude a língua antes de ela ir para a UTI, reduzida
a poucos falantes. Carmen Rodrigues, além do xipaia, pretende estabelecer
uma ortografia para outro idioma, o araueté.

Os arauetés vivem no igarapé Ipixuna, à margem Rio Xingu, no Pará. Para
chegar à aldeia, são oito horas de barco com motor de popa a partir de
Altamira, a cidade mais próxima. Os pouco mais de 350 moradores da aldeia
mantida pela Funai mantêm sua língua e boa parte de sua cultura preservadas.
Ainda vivem da pesca, da caça, da fabricação de farinha de mandioca, da
extração da castanha. As mulheres tecem suas saias e andam com os seios nus.
Em noites de lua cheia, o povo dança e canta em torno do fogo. O pajé trata
de picadas de cobra e problemas no joelho. De madrugada, pode-se ouvi-lo
cantar. As famílias ainda comem em torno do fogo, sentadas na esteira.

Também se notam as primeiras marcas do contato com os brancos. Além de peixe
e porco-do-mato, os arauetés hoje comem muito açúcar. Os homens não andam
mais nus. Vestem short e camiseta. As filas do posto médico instalado na
aldeia mostram que a fé no pajé já não é tão grande. A televisão, a que
muitos assistem deitados no chão de terra, já é um dos lazeres principais da
comunidade. "Não queremos perder nossa cultura e nossa língua", diz o
cacique Tatuavim. Mas, como Maria na juventude, alguns arauetés mais novos
têm dificuldade de entender que dá para conciliar o português com a língua
ancestral. "Quando a gente começa com o português, vai esquecendo o araueté.
O importante é o português", diz Ravutiré, de 16 anos. Ele é um dos
informantes de Carmen Rodrigues em seu projeto.

Não se pode impor a qualquer grupo indígena a obrigação de manter sua
cultura ou sua língua. "Em geral, s não é uma questão de escolha", diz a
antropóloga. Além de tentar documentar as línguas para que não se perca a
imensa riqueza cultural que elas representam, é possível dar condições
econômicas e culturais para que esses povos decidam o que querem manter
intocado e o que querem aproveitar de nossa cultura. O caminho, como em
outras questões brasileiras, passa pela educação.

A Constituição de 1988 determina o ensino bilíngüe nas escolas de áreas
indígenas brasileiras. Isso só é possível se os lingüistas conseguirem
estabelecer as ortografias dos idiomas. Há muitos em campo atualmente no
Brasil. Centros como o Museu Goeldi, a Universidade de Brasília, a
Universidade Federal do Pará e a Unicamp desenvolvem trabalhos de pesquisa
por todo o território nacional. Mas há mais línguas que lingüistas
especializados. O espaço acaba sendo ocupado por missionários religiosos.
Eles carregam a tradição, primeiro católica, depois evangélica, de estudar
os idiomas indígenas para então transmitir as palavras da Bíblia aos
infiéis. "Alguns missionários são muito competentes", diz Aryon Rodrigues.
"Mas o objetivo deles em geral é apenas traduzir a Bíblia."

A língua portuguesa, que passa na TV, toca no rádio e aparece por meio da
internet, é mais atraente para esses jovens. Para compensar um pouco dessa
influência, o laboratório de lingüística do Museu Goeldi resolveu atacar com
a mesma arma: a tecnologia. A instituição grava DVDs com danças, produz
material audiovisual sobre os métodos de caça e distribui CDs com músicas
tradicionais. Parece funcionar. "Eles ouvem, ouvem e ouvem", diz o lingüista
Danny Moore. "Os ticunas, por exemplo, já nos pediram para gravar CDs para
seus filhos pequenos escutarem."

No passado, predominava entre os antropólogos uma visão paternalista,
segundo a qual o contato entre os índios e os brancos era sempre danoso para
as suas culturas. Hoje se admite que aprender a língua oficial do país - o
português - é não só inevitável, como também desejável. O caminho, segundo
os especialistas, é despertar nos índios o desejo de valorizar também a
própria cultura. E iniciativas como a do Museu Goeldi são um passo decisivo
nessa direção.

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