Imprensa: sobre os catecismos de Mamiani e Nantes

Eduardo Ribeiro kariri at GMAIL.COM
Wed Dec 19 23:31:10 UTC 2007


A edição 26 (nov/2007) da *Revista de História da Biblioteca Nacional* traz
um pequeno artigo (vide abaixo) sobre os catecismos Kipeá (Mamiani 1698) e
Dzubukuá (Nantes 1709), ambos existentes no acervo da Biblioteca Nacional (o
primeiro em edição fac-similar publicada, por sinal, por iniciativa da
própria Biblioteca Nacional em 1942). A revista pode ser lida no seguinte
endereço:

http://www.revistadehistoria.com.br/

O artigo comete um pequeno deslize, no último parágrafo, ao atribuir a
Mamiani um trecho da introdução à edição fac-similar do *Catecismo
Kiriri*, escrita
por Rodolfo Garcia.

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  *A outra face da lua* *por Marcello Scarrone*

 "A língua mais usada na costa do Brasil". É assim que o padre Anchieta se
refere ao tupi no título da *Arte da Gramática*, que escreveu em 1595. "Mais
usada" ou, como diziam alguns, "mais geral falada": missionários, colonos,
grupos de índios tupinambás se comunicavam por meio dela, ajudados por
catecismos e gramáticas. É desta forma que uma versão ocidentalizada do
mesmo idioma chegou a ser moldada e difundida: a "língua geral".

Menos conhecido é o fato de que índios de outros grupos étnicos, inimigos
dos tupis e por eles chamados genericamente de tapuias por falarem outras
línguas, ganharam também catecismos e manuais para o conhecimento de seus
idiomas, embora em época mais tardia. Dois destes instrumentos se encontram
na Divisão de Obras Raras da Biblioteca Nacional e documentam a atenção de
ordens religiosas com os kariris, uma das famílias tapuias do sertão
nordestino, ao longo do Rio São Francisco. O *Catecismo Índico da língua
Kariris, acrescentado de várias práticas doutrinais e morais, adaptadas pelo
gênio e capacidade dos índios do Brasil* é publicado em Lisboa em 1709 pelo
capuchinho francês Bernardo de Nantes, onze anos depois do *Catecismo da
Doutrina Cristã na língua brasílica da Nação Kiriri*, composto em 1698 pelo
jesuíta italiano Ludovico Vincenzo Mamiani della Rovere e do qual a BN
conserva uma edição fac-similar.

A produção desses catecismos mostra a importância que as ordens religiosas
atribuíam à evangelização de índios como os kariris ainda no final do século
XVII, e seu esforço para penetrar no mundo e na cultura deles, aprendendo
sua linguagem, seus costumes, seus mitos. Até mesmo as diversidades entre um
grupo e outro são percebidas e valorizadas pelos missionários. A este
respeito, é significativa a insistência com que o autor francês, com medo de
que seu trabalho fosse considerado inútil, reafirma no prólogo as diferenças
entre o seu catecismo e o de Mamiani. O livro do capuchinho foi escrito para
os kariris do dzubukuá, idioma falado no médio São Francisco (hoje, entre
Petrolina e Paulo Afonso), enquanto o do jesuíta era para os kariris (ou
kiriris) kipea, da bacia do Rio Itapicuru, na Bahia. A diferença entre os
dois idiomas, segundo frei Bernardo, é comparável à que existe entre o
castelhano e o português.

Nos dois catecismos, temos assim, ao lado de expressões parecidas, opções
semânticas diferentes para vários conceitos de fundamental importância.
Ambas as obras são edições bilíngües, mas, enquanto o texto do capuchinho
parece mais voltado para o beneficio dos próprios índios, o outro foi feito
sobretudo "para os missionários novos serem ouvidos e entendidos dos índios,
que é o fim principal que se pretende, pois por falta dele não se declaram
aos índios muitos mistérios e muitas coisas necessárias a um cristão".

Na introdução, os dois autores não deixam de enaltecer a ação dos
missionários, com todas as suas dificuldades. "Não satisfeitos do que tinham
obrado com os índios marítimos da língua geral, [os missionários] penetraram
os sertões interiores deste Brasil, para reduzir ao rebanho de Cristo também
os índios bravios e tapuias, e os primeiros que tiveram esta sorte foram os
da nação a que vulgarmente chamamos dos Kiriris", escreve o padre Mamiani, e
o capuchinho lhe faz eco: "Nas perguntas encerrei às vezes a resolução das
dificuldades das respostas para facilitallas ao gênio rasteiro dos índios,
os quais, por estar muito avante metido dentro do certão (*sic*) interior do
Brasil e afastados das povoações dos brancos, não podem ser instruídos em
outra língua mais do que na sua própria, a qual até agora nunca teve livro
doutrinal, nem outro posto à estampa. O meu intento neste trabalho foi
servir ainda cá [Lisboa] aos índios, já que não o posso mais fazer lá".

Temos aqui, afinal, dois exemplos preciosos da tentativa de se conhecer e
codificar alguns idiomas indígenas que, diferentemente da língua tupi, não
eram muito falados. Até porque, como sugere a rápida notação de Mamiani na
introdução ao seu catecismo, "Quiriri, alterado em Cariri, é qualificativo
tupi, que significa *calado*, *silencioso*, e que indica uma característica
etnográfica tanto mais notável quanto se sabe que os outros índios eram
palradores incoercíveis".
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