Contribui ção Indígena para a cultura brasileira atual .

Beni Borja beni at PSICOTRONICA.COM.BR
Tue Oct 27 18:17:13 UTC 2009


Caros Eduardo, Rauly, Francisco e Jefferson , 

Agradeço muitíssimo o interesse de vocês sobre a minha pesquisa, como também ao Wilmar que me mandou uma mensagem fora da lista. 

São utilíssimas as sugestões de leitura, que serão oportunamente lidas. Aliás , Francisco o livro que voce citou eu não encontro em lugar nenhum, será que só na UERJ mesmo? 

Achei que para que voces continuem colaborando comigo, seria  interessante que eu contasse mais um pouco mais sobre o projeto. 

A idéia inicial veio num período em que eu trabalhei no exterior. Eu percebi, depois de algum tempo, que eu reconhecia brasileiros à distância. Imaginei que eram as roupas ou o jeito de corpo que os denunciava , mas depois conversando com outros expatriados , verifiquei que na verdade , com uma natural margem de erro , todos nós identificávamos um brasileiro , mesmo que ele estivesse vestido  e se comportando como um americano.   

Aquilo me intrigou. Afinal considerando a nossa diversidade étnica , nunca tinha me ocorrido que pudesse haver uma ¨cara¨ de brasileiro. 

De fato, não era uma cara única , mas uma diversidade de tipos que tinham algo que os identificava como brasileiros. Desses tipos, o mais óbvio para mim era o sertanejo nordestino.  Essa identidade nordestina foi a senha para a óbvia conclusão de que eram as nossas raízes indígenas que nos davam um caráter particular no meio daquele mundo de gente de todo o globo. 

Tenho avós nordestinos de pai e mãe , um cearense ,outro potiguar , e jamais em minha família alguém mencionou nenhum ancestral indígena. Percebi que muitos nordestinos orgulhosos de suas raízes , como eram meus avós , se sentiam ligeiramente ofendidos quando eu me referia a evidente raiz indígena da cultura nordestina. 

Isso me despertou para o fato de que presença indígena na cultura brasileira de hoje era sistemática e deliberadamente ignorada.   

Fui aos livros , particularmente as fontes da história , e foi ficando cada vez mais claro , que independente da evidente matança protagonizada pelos portugueses, os números de índios no Brasil também se reduziram significativamente pela simples adoção de uma identidade portuguesa  por uma substancial parte das populações de origem indígena.  

É absolutamente natural que os meus antepassados kariris e potiguares , em algum momento da história tenham preferido se dizer portugueses, muito embora continuassem tomando banho duas vezes por dia, comessem com farinha de mandioca e dormissem em redes. Assim como é absolutamente natural que a população indígena cresça no Brasil nos últimos anos , com a possibilidade de resolver questões fundiárias pelo reconhecimento de uma identidade indígena. 

Quando tomei conhecimento da pesquisa do Sérgio Penna sobre o DNA do brasileiro , que comprovava que exatamente 1/3 do material genético do brasileiro de hoje é de origem indígena , minha convicção nas minhas idéias se completou. 
 
Então o que me ensinaram na escola , que os índios brasileiros tinham sido práticamente extintos pelo genocídio e que sua cultura só sobrevivia com enorme dificuldade em reservas longínquas, era apenas uma construção ideológica que servia muito bem para a justificação da afirmação de uma pseudo-cidadania européia.   

Restabelecer a ponte entre os nossos antepassados indígenas e nós brasileiros de hoje ,me parece que é uma tarefa que se impõe. 

Não apenas pelos benefícios que pode trazer à nossa auto-estima o reconhecimento da singularidade da nossa civilização, mas especialmente para as populações que conservam as culturas originárias do Brasil , de deixarem a condição de espécimes de um zoológico humano, para a de conservadores de um patrimônio comum. 

Claro , que isso tudo que eu disse não é nenhuma novidade para vocês , mas para mim , um mero compositor e produtor cultural , foi uma revelação, uma que me parece que deve ser dividida com outros. 

um abraço, 

Beni








  ----- Original Message ----- 
  From: Eduardo Rivail Ribeiro 
  To: etnolinguistica at yahoogrupos.com.br 
  Sent: Sunday, October 25, 2009 7:13 PM
  Subject: [etnolinguistica] Re: Contribuição Indígena para a cultura brasileira atual .


    Prezado Beni,

  Excelente idéia esta, do documentário. Eis aqui alguns palpites. Em geral, as contribuições lingüísticas são boas pistas para se chegar a contribuições à cultura material e espiritual, porque, em geral, o uso de um nome indígena para um item ou uma prática cultural indica uma origem indígena para os mesmos (por exemplo, na culinária, o pirão, o mingau, a paçoca -- denominados por nomes indígenas -- são óbvias contribuições indígenas). Às vezes há surpresas interessantes -- como é o caso de 'quarar', discutido aqui antes, ou o da 'moqueca', que, apesar do nome indígena, é geralmente vista como uma contribuição africana. Porque, afinal, a Língua Geral acabou ultrapassando barreiras étnicas (sendo falada, por exemplo, no Triângulo Mineiro, por mestiços de Boróro e negros).

  Como a Língua Geral era a língua do povo, é natural que nos tenha legado denominações para itens do cotidiano que, em última instância, não são propriamente de origem indígena. Por exemplo, 'paqüera', que se refere a entranhas, miúdos (em geral, de porco ou bovino, animais de origem exótica); ou 'suã' (também de porco). Ou 'quirera', que se refere a fragmentos de grãos (qualquer um, incluindo os de origem exótica, como o arroz). Ou 'quarar' (roupas, afinal, não ocupavam muita importância entre os indígenas brasileiros).

  Os hábitos de higiene, como você menciona, são um bom exemplo de provável influência indígena. Sobre isto, uma fonte excelente é Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil, Caminhos e Fronteiras, etc.), que contrasta bem o comportamento dos nascidos no Brasil, acostumados, como os índios, a banhos diários, e o de portugueses recém-chegados. Um caso anedótico, que ele menciona, é o de um alto funcionário português que fez a longa jornada de São Paulo a Cuiabá sem tomar um banho sequer, causando estranheza entre os paulistas que o acompanharam na viagem.

  Há, claro, contribuições gerais para uma cultura nacional -- caso de alguns dos itens culturais mencionados acima. Mas é necessário resistirmos à tentação de ver as contribuições indígenas como algo monolítico no país. Há certas culturas regionais que herdaram -- ou preservaram -- mais de nossos ancestrais indígenas. O caboclo amazônico e o caipira, por exemplo. A catira, ainda praticada por caipiras em Goiás, Minas etc., é de origem indígena. E há crenças relacionadas à vida cotidiana que são herdadas diretamente de nossos ancestrais indígenas. Esta é uma diferença essencial entre uma herança puramente econômica (caso do milho ou da abóbora, digamos, nos EUA) e uma herança cultural mais integral, em que práticas econômicas são imbuídas de um sistema de crenças. Entre os lavradores da minha região, por exemplo, há uma maneira "correta" de se arrancar a mandioca; se o sujeito gemer, prejudica a qualidade da raiz. É uma crença que talvez tenha vindo dos índios, que foram, afinal, os que nos ensinaram a plantar mandioca. Qualquer um pode plantar mandioca, claro; mas as crenças associadas ao plantio, isto em geral é o que se adquire de pai para filho, desde os índios até o caipira atual.

  Outra prática ainda usada entre os caipiras é a do mutirão, também de origem indígena (http://www.etnolinguistica.org/tupi:mutirao).
  E práticas como estas tendem a desaparecer, com a urbanização, a escolarização, etc. Portanto, tendem a ser melhor preservadas em ambientes rurais e relativamente isolados. Um fato interessante é que, na segunda metade do século XIX, os caipiras paulistas ainda preservavam muitas palavras da língua geral que seriam depois substituídas por palavras do português. Isto é relatado em uma passagem pouco conhecida do livro Viagem ao Araguaia, de Couto de Magalhães (que comentei em meu blog: http://tr.im/avati). Ao valorizarmos nossa herança indígena, devemos valorizar também o caipira, o caboclo, o sertanejo, que são, afinal, os que nos ancoram a nossas raízes.

  Meu penúltimo palpite diz respeito a um preconceito a ser evitado. É comum ouvir-se, em discussões sobre o Tupinambá, que teria sido "nossa língua original", "a língua de nossos ancestrais". Por mais que a intenção seja exatamente oposta (nacionalista e nativista), isto tem na verdade um viés colonialista. As línguas de nossos ancestrais eram centenas e a contribuição indígena para a formação genética e cultural do brasileiro provém de uma diversidade de povos. O caráter unificante da Língua Geral, que tanto favoreceu a colonização e, possivelmente, a unidade nacional, não deve obscurecer o papel de tantos povos indígenas, anônimos ou não, na construção da cultura brasileira. A ênfase exagerada no Tupinambá resulta numa injustiça para com os demais povos indígenas, muitos dos quais ainda sobrevivem entre nós. Basta ver quantas cidades evoluíram a partir de aldeias ou aldeamentos indígenas para perceber-se que nossos ancestrais indígenas não são necessariamente índios Tupí extintos há séculos. Um exemplo de estudo genético demonstrando isto, com relação aos Botocudos e seus descendentes em uma pequena cidade de Minas, pode ser acessado no seguinte endereço:

  http://www.etnolinguistica.org/media:jan2005

  Finalmente, há o que eu chamaria de "implantes culturais" -- aspectos do folclore dito "brasileiro" cuja ampla distribuição deve-se mais à mídia e aos velhos livros de Educação Moral e Cívica do que a uma herança cultural propriamente dita. Por mais que eu seja fã do Sítio do Pica-Pau Amarelo, sacis e boitatás nunca foram parte de meu universo cultural, por mais que meus livros escolares tentassem promovê-los como "cultura nacional". Claro que não são pura invenção -- devem ser, afinal, parte da cultura tradicional de algum lugar. Mas não da minha.

  Abraços,

  Eduardo

  --- Em etnolinguistica at yahoogrupos.com.br, "Beni Borja" <beni at ...> escreveu
  >
  > Prezados, 
  > 
  > Estou escrevendo o roteiro para um documentário que versa sobre a contribuição indígena para a formação da cultura brasileira atual. 
  > 
  > Me interessaria muitíssimo ouvir de vocês suas opiniões gerais sobre o tema ,e especialmente coisas específicas que fazemos hoje cujas raízes são , ou podem ser, indígenas. 
  > 
  > Naturalmente, a contribuição linguística tem uma parte essencial nessa história que eu estou montando, mas além dela temos muitíssimos comportamentos sociais, de como comemos,bebemos,dançamos,nos asseamos etc... que tem óbvia contribuição indígena. Meu interesse é tanto comportamental, quanto factual. 
  > 
  > Compreendo a natureza científica desse grupo, e peço perdão antecipadamente pelo meu questionamento ser ligeiramente ¨off-topic¨, mas me pareceu que os integrantes desse grupo poderiam dar uma contribuição muito rica para esse meu projeto. Pediria a vocês que se despissem por um momento, do rigor científico e me falassem das suas experiências pessoais e das idéias que você tem sobre o tema ,mesmo que elas não tenham comprovação material. 
  > 
  > Como se trata de uma pesquisa para um roteiro em construção, preciso nesse momentos mais de pistas e questionamentos do que própriamente afirmações categóricas, 
  > 
  > Agradecendo desde já as contribuições , 
  > 
  > um abraço, 
  > 
  > Beni Borja
  >



  
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