Kaing áng e Polinésio?

Eduardo Rivail Ribeiro kariri at GMAIL.COM
Sat Mar 13 21:22:24 UTC 2010


Caro Marcelo,

Obrigado, uma vez mais. Antes, uma questão administrativa: infelizmente, no site do grupo, a mensagem ficou truncada, por ser longa demais (mais uma limitação do Yahoo Grupos que eu desconhecia). Para que aqueles colegas que optaram por ler mensagens apenas no site possam se beneficiar da discussão, eu te pediria que, se possível, incluísse as tabelas de dados em seu site e nos enviasse um link.

No caso da América do Sul, um exemplo parecido ao cenário que você sugere (exceto pelo fato de que as línguas continuam compartilhando o mesmo território) seria o caso do Quechua e do Aymara, que alguns (Longacre, por exemplo) incluem na mesma família, outros não. E me lembro de ter lido a respeito de cenários parecidos envolvendo as línguas européias, que vêm sofrendo convergência gramatical e lexical por séculos.

Mas, se entendi bem, o que você está defendendo é basicamente o método comparativo canônico. Desde suas origens, a lingüística histórico-comparativa vem reconhecendo o grande valor de evidências gramaticais. E nenhuma comparação bem feita que eu conheça se limita ao léxico básico. Se, no caso do Macro-Jê, o uso de evidências gramaticais é menos comum, isto é conseqüência de dois fatores básicos:

1. Há pouca morfologia na maioria das línguas atuais e, pelo pouco que se pode detectar através da comparação entre famílias, esta já teria sido a situação na proto-língua.

2. Muitas das línguas Macro-Jê se extinguiram sem que sua gramática tivesse sido devidamente documentada. Mesmo no caso das línguas ainda faladas, faltam descrições suficientemente aprofundadas. Por exemplo, antes da minha tese de mestrado (1996), a existência de um infixo -r- em Karajá, formador de nomes deverbais, não havia sequer sido mencionada. Até que se descubra isso, como poderíamos saber que o Karajá e a família Jê compartilham este cognato? Às vezes, mesmo no caso de línguas extintas e pouco documentadas, as evidências existem mas passam despercebidas. É o caso do "marcador de posse alienável" em Krenák, que mencionei recentemente (http://www.etnolinguistica.org/nota:2).  Mais uma vez, não basta que sejam morfemas parecidos (Jê *j-õ, Krenák nhuck), mas que sigam correspondências fonológicas regulares.

Então, no caso de evidências gramaticais, elas têm sido usadas sempre que possível.  Greenberg já apontava, no caso do Chiquitano, as notáveis semelhanças no sistema de prefixos pessoais -- algo confirmado por Adelaar. Já em Rodrigues (1986), prefixos pessoais desempenhavam papel importante na constituição do tronco. Mas, uma vez mais, não basta que sejam parecidos; as correspondências fonológicas devem ser regulares, corroboradas por dados lexicais.

O mesmo vale para os chamados "prefixos relacionais". Há várias análises divergentes sobre a natureza destes morfemas (ou mesmo se são morfemas ou não), mas, para mim, parece inegável que sua ocorrência em línguas tão divergentes quanto o Karajá, o Ofayé e o Djeoromitxi é uma herança da proto-língua -- especialmente porque tais alternâncias são ilustradas por cognatos lexicais e corroboradas por correspondências fonológicas.

No estudo que Hein e eu fizemos propondo a inclusão da família Jabutí, fizemos uso de todas as evidências que tínhamos então à nossa disposição, seguindo à risca o método comparativo. Isto inclui o léxico básico, menos propício a empréstimos, o sistema de marcação pessoal, etc. O pouco de morfologia que há em Jabutí é, em grande parte, cognato do que temos em outras famílias do tronco. E há indícios claros de que as alternâncias morfológicas envolvendo os chamados "relacionais" em começo de raiz (como em Jê *j-arkwa 'boca' vs. *s-arkwa 'boca dele') ocorrem também na família Jabutí. O mais importante é que todas estas similaridades são corroboradas por correspondências fonológicas regulares.

O mesmo pode ser dito com relação ao Chiquitano. Eu concordo com as conclusões de Adelaar e, recentemente, concluí um artigo identificando cognatos adicionais, possíveis empréstimos compartilhados com outras línguas Macro-Jê (das famílias Boróro e Jabuti), etc. Talvez uma das evidências gramaticais mais importantes para a inclusão do Chiquitano seja a existência de consoantes iniciais "móveis"(z-, n-) correspondendo aos "relacionais" em Jê (e fenômenos parecidos em Jabuti, Karajá, etc.), e que alternam com zero em certos ambientes; mais uma vez, as correspondências fonológicas batem. Aliás, posso te enviar este artigo em separado, caso te interesse.

Enfim, há muito trabalho básico que precisa ser feito antes de se partir para hipóteses de relacionamento genético fora do tronco e, principalente, fora do continente. As próprias fronteiras do Macro-Jê são um tanto fluidas (eu excluo o Guató, mas não tenho a menor dúvida quanto à inclusão do Chiquitano e da família Jabutí) e há muito ainda a se aprender no nível da descrição individual de cada língua.

Nenhum método computacional redime uma análise capenga, baseada em dados deficientes ou descontextualizados (por mais sofisticado que seja o método ou a teoria). E isto, infelizmente, é que parece ser ignorado por lingüistas que menosprezam o método histórico-comparativo e o trabalho longo de descrever uma língua em seus mínimos detalhes. Anedoticamente, um colega outro dia mencionou um trabalho de um outro lingüista com passagem pelo Max Plank em que, graças a um método novo, ele demonstrava que o Pataxó pertencia à família Maxakalí. Uai, já não sabíamos disso? 

Abraços,

Eduardo
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