Blog: Carlos Estev=?ISO-8859-1?Q?=E3o=2C_?=a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica, PE

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Mon Nov 28 11:13:35 UTC 2011


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Bebendo jurema ou a festa do ajucá

Carlos Estêvão

Quero referir-me à festa da jurema ou do ajucá. Sendo de caráter reservado,
por ser essencialmente religiosa, nem todos os habitantes da aldeia podem a
ela comparecer. As instâncias minhas, o velho Serafim prontificou-se a
realizar uma, de dia, consentindo que eu assistisse a ela. No dia marcado,
muito cedo ainda, em companhia de Bernardo e outro amigo, deixei o Brejo e,
galgando a serra dos Caboclos, fui ter à casa do velho Serafim. Em lá
chegando, verifiquei que o chefe já se achava no lugar em que a festa se ia
realizar. Em vista disso dirigi-me para onde ele estava, indo encontrá-lo
preparando o ajucá. Esta é a bebida milagrosa, feita com raiz da jurema.
Assisti a todo o seu preparo. Raspada a raiz, é a raspa lavada para
eliminação da terra que, porventura, nela esteja agregada, sendo, em
seguida, colocada sobre outra pedra. Quando a maceração está completa,
bota-se toda a massa dentro de uma vasilha com água, onde a espreme com as
mãos a pessoa que a prepara. Pouco a pouco, a água vai-se transformando
numa golda vermelha e espumosa, até ficar em ponto de ser bebida. Pronta
para este fim, dela se elimina toda a espuma, ficando, assim, inteiramente
limpa. Ao ficar nesse estado, o velho Serafim acendeu um cachimbo tubular,
feito de raiz de jurema, e, colocando-o em sentido inverso, isto é, botando
na boca a parte em que se põe o fumo, soprou-o de encontro ao líquido que
estava na vasilha, nela fazendo com a fumaça uma figura em forma de cruz e
um ponto em cada um dos ângulos formados pelos braços da figura. Logo que
isso foi feito, um caboclo, filho do chefe, colocou a vasilha no solo,
sobre duas folhas de uricuri, que formavam uma espécie de esteira. Em
seguida, todos que ali se encontravam, inclusive duas velhas e reputadas
cantadeiras, sentaram-se no chão, formando um círculo em redor da vasilha.
Ia começar a festa. O chefe e mais dois assistentes acenderam seus
cachimbos. Ninguém falava. Um ambiente de religiosidade formara-se sob a
abóbada de folhagem que nos abrigava. Os cachimbos, passando de mão em mão,
correram toda a roda. Quando voltaram aos donos, uma das cantadeiras,
tocando o maracá, principiou a cantar. Era uma invocação a Nossa Senhora,
na qual se pedia paz e felicidade para a aldeia. Depois, vieram as toadas
pagãs dirigidas aos encantados. De vez em quando, no decorrer da cantiga,
ouviam-se, porém, os nomes de Jesus Cristo, Deus, Mãe de Deus, Nossa
Senhora, Padre Eterno e, às vezes, também, o nome do padre Cícero.

Em uma das toadas, a cantadeira, dirigindo-se a Nossa Senhora, agradeceu a
minha presença na aldeia e rogou pela minha felicidade. Enquanto isso, o
caboclo que colocara a vasilha sobre as folhas, respeitoso e solene, ia
distribuindo pelos demais a bebida mágica que transporta os indivíduos a
mundos estranhos e lhes permite entrar em contato com as almas dos mortos e
espíritos protetores. Aquele que recebia a vasilha, era com a máxima
reverência que sorvia alguns goles do ajucá. Ao chegar a vez da primeira
das cantadeiras, a velha Maria Pastora, esta levantou-se, recebeu a
vasilha, ergueu-a com as duas mãos sobre a cabeça e, olhando para o alto,
recitou uma oração em voz baixa. Depois, sentando-se, bebeu o ajucá.
Terminada a distribuição, o distribuidor, ajoelhando-se nas folhas do
uricuri, sorveu, por sua vez, um pouco da bebida. O resto foi botado num
buraco, preparado de propósito para aquele fim. Todas essas cenas
passaram-se ao som das cantigas e ao toque dos maracás. Quando uma
cantadeira cansava, a outra principiava. Os cachimbos, hora por outra,
percorriam o círculo, passando de mão em mão e de boca em boca. Ao
terminar, homens e mulheres puseram-se de pé. As cantadeiras começaram
então, com os maracás, a benzer todos os presentes, um a um, inclusive eu,
sempre cantando. Maria Pastora quando me benzeu pediu a Deus por mim e fez
preces pela minha ventura. A outra cantadeira, no ato de me benzer, fez
também a mesma coisa, dirigindo-se porém, a Nossa Senhora e me chamando
"Caminhador das Aldeias". Prosseguindo, Pastora mandou chamar e benzeu
todos que se encontravam por perto e não tiveram permissão para assistir ao
ajucá. Por fim, as duas despediram-se, fazendo protestos de solidariedade
ao chefe. Antes, porém, de irem embora, Maria Pastora, de pé, balbuciou uma
prece a um dos espíritos protetores da aldeia.

[1937]
(Em CASCUDO, Luís da Câmara. *Antologia do folclore brasileiro*. 2ª ed. São
Paulo, Livraria Martins, 1954, v.2, p.512-514)

http://www.jangadabrasil.com.br/revista/maio66/fe66005a.asp


Em 28 de novembro de 2011 00:51, Biblioteca Digital Curt Nimuendaju <
biblio at etnolinguistica.org> escreveu:

> **
>
>
> O antropólogo Renato Athias (http://www.etnolinguistica.org/perfil:77)
> acaba de publicar em nosso blog um texto sobre o artigo "O ossuário da
> 'Gruta-do-Padre' em Itaparica e algumas notícias sobre remanescentes
> indígenas do Nordeste", de Carlos Estevão de Oliveira (1942),
> recentemente incluído no acervo da Biblioteca Digital Curt Nimuendaju.
>
> O texto de Athias, ressaltando a importância do trabalho de Carlos
> Estevão (e sua utilidade, inclusive, no processo de resgate cultural
> dos Pankararú atuais), pode ser acessado no seguinte endereço:
>
> http://j.mp/pankararu
>
> ----
> Divulgue este recurso no Twitter:
> http://twitter.com/nimuendaju/status/140981458989875201
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> http://biblio.etnolinguistica.org/
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Paulo Pedro P. R. Costa
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