[Etnolinguistica] [etnolinguistica] Taruma?

Sérgio Meira asehpe@gmail.com [etnolinguistica] etnolinguistica at yahoogrupos.com.br
Thu Feb 26 09:26:45 UTC 2015


Marcelo,


> Sérgio,
>
> Realmente, a questão dos pronomes é curiosa. O pronome de segunda
> pessoa Waimiri-Atroari aʔa é mesmo idêntico ao pronome de segunda
> pessoa Taruma coletado por Farabee (1918:283). Seria Waimiri-Atroari aʔa
> cognato com as formas de outras línguas Karíb, como Yukpa amo, Tiriyó əmə,
> Hixkaryana omoro, Makushi amɨrɨ, Panare amən, Bakairi əmə, Ikpeng omro,
> Kuikuro e:ɣe (Meira & Franchetto 2005:180)? Vale notar que os
> Waimiri-Atroari estão numa região muito próxima daquela por onde os
> Taruma também circulavam. Me parece que ainda não há consenso sobre o
> /a/ inicial em palavras de línguas Chibcha; esta é justamente uma das
> questões que Matthias está investigando.
>

Como a Ana Carla falou no e-mail dela, de fato, /aʔa/ é realmente o nós
exclusivo do Waimiri-Atroari, não o pronome de segunda pessoa -- falha
minha. (Ele talvez seja cognato de formas para o nós exclusivo como /amna/
em Waiwai, Hixkaryana e Katxuyana, ou /anja/ em Tiriyó, mas estou um pouco
cético a respeito já que não há correspondência regular entre uma oclusiva
glotal e sequências de consoantes nasais na família caribe). Isso tira um
pouco o impacto da comparação, embora talvez ainda haja alguma chance da
semelhança significar algo.


Como Loukotka (1949) já havia mencionado, existem muitos paralelos
> interessantes, por exemplo, entre o Taruma: (i) e línguas Mura-Pirahã
> (Taruma hua/fua 'fogo', Mura foai 'fogo', Bohurá huai 'fogo';  Taruma baiyi
> 'tateto', Bohurá bai 'tateto'; Taruma kaikwi 'paca', Bohurá kaehi 'paca',
> etc.); (ii) e línguas Arawák (Taruma ʃirata 'tesoura', Atorai ʃirata
> 'tesoura'; Taruma malia 'faca', Wapixana mari 'faca'; Taruma dun 'onça',
> Aruã dinu 'onça'; Taruma rumi 'macaco sp.', Wapishana rumi 'macaco sp.';
> Taruma kwisa 'macaco sp.', Wapishana wisa 'macaco sp.'); (iii) e línguas
> Karíb (Taruma gulaparu 'pólvora', Arekuna kulupala 'pólvora', Makushi
> kulabela 'polvora'; Taruma mulu 'algodão', Waiwai mawrɨ
> 'algodão').  Igualmente, os paralelos apontados por você, Françoise e Pedro
> também mostram que os Taruma mantiveram contato com povos de origem Tupí
> (os termos 'piolho', 'veado' e 'flecha' são realmente emblemáticos). Além
> disto, eu observei que também existem alguns paralelos muito interessantes
> entre o Taruma e línguas Arawá (Taruma mebena ~ njebena 'língua',
> Proto-Arawá *abeno-/*ebano- 'língua' (Dixon 2004:48); Taruma bade
> 'machado', Proto-Arawá *bari 'machado' (Dixon 2004:50); Taruma urabe
> 'remo', Proto-Arawá *waRami 'remo' (Dixon 2004:73)).
>

Mas observo que aqui nesses termos, nós temos, como dizem na minha santa
terrinha, um verdadeiro balaio de gatos. As comparações com línguas Arawak
são obviamente termos para objetos alógenos: 'tesoura', 'faca', ambos com
história de empréstimo; compare-se Tiriyó /siráta/ 'tesoura', /maja/ 'faca'
(/marija/ em Hixkaryana, Katxuyana, Wayana, Apalaí...). O mesmo para
'pólvora', certamente não uma palavra tradicional indígena. As semelhanças
com o Wapishana podem muito bem resultar de empréstimos ao Wapishana, que é
a língua mais forte dos falantes remanescentes de Taruma (compare-se também
Wapishana /kuwaiba/ 'pulga', Taruma /kuwába/; ou Wapishana /wabo/ 'açaí',
Taruma /wábu/ -- veja-se também Tiriyó /wapu/ 'açaí'). Para 'algodão', os
Taruma que encontrei não reconheceram /mulu/; traduziram-me o Wapishana
/kinaridi/ 'algodão' como /sídji/... Os termos mais curiosos, para os quais
eu realmente gostaria de uma boa explicação, são 'piolho', 'veado' e
'flecha'; noto, contudo, que são poucos, de modo que coincidência permanece
uma possibilidade... (Além disso, se vocês comparam "piolho" em Taruma com
as línguas Chibcha, então o termo não poderia ao mesmo tempo ser cognato
com os termos Tupi de Rondônia, já que Chibcha e Tupi não são famílias
aparentadas, não é?)

Por isso, o melhor tipo de argumento para demonstrar alguma relação
genética real é a presença de correspondências regulares... A história das
comparações do basco com quase qualquer outra língua, desde as do Cáucaso
até línguas ameríndias ou austronésias, mostra que, com alguma dose de
engenhosidade, é possível encontrar semelhanças com quase tudo... se não,
vejamos: eis aqui alguns possíveis "cognatos" que encontrei em uma meia
horinha de comparação entre os meus dados e línguas indo-europeias como o
inglês e o português

*Taruma vs. Inglês* (e outras línguas germânicas):

*a-sy* 'dente' (cf. Proto-Chibcha **tu-*, mencionado em outra mensagem),
Ingl.*tooth*
*ása*, *ásy* 'nariz', Ingl.*nose *(cf. também alemão *Nase*)
*ada *'cabeça', Ingl *head*
*a-bára* 'costas', Ingl. *back*
*a-pẽre* 'testículos', Ingl. *balls*
*a-sýku *'pele, casca', Ingl. *skin*
*cinári* 'perna', canela', Ingl. *shin*
*djísy* 'nádegas', Ingl. *ass*
*dy-kátu* 'flatulência', Ingl. *fart*
*uru-kúdu* 'joelho', Ingl. *knee*
*wú-ka* 'sangue', Ingl. *blood* (/o/ < */u/; cf. *wu-* com holandês *bloe-d*,
alemão *Blu-t)*
*wú-du* 'urina', Ingl. *u-rine*
*djáwã*, *djáwi* 'criança', Ingl. *child*
*dúdu *'terra, chão', Ingl. *doody *'excremento' (talvez via
'fertilizante'?)
*dúja *'casa', Ingl. *door *'porta'
*fwa *'fogo', Ingl. *fire*
*gíka* 'homem', Ingl. *guy* (pronúncia medieval [gi:], com [i:] longo)
*u* 'madeira, pau', Ingl. *wood*
*áka* 'arara', Ingl. *macaw*
*dúha *'levar', Ingl. *take* (cf. passado *took*)
*hẽ ~ c**ẽ* 'ver', Ingl. *see *(cf. particípio *seen*; o [i] < [e]; cf.
alemão *sehen*)
*kúta* 'cortar', Ingl. *cut*
*na-káni *'saber', Ingl. *know *(cf. holandês, alemão *kennen*)

*Taruma vs. Português*

*á-pa* 'pé', Port. *pé, pa-ta*
*á-pe* 'pedra', Port. *pe-dra*
*bijádu* 'savana, cerrado', Port. *veado* (habitante da savana?)
*djíka* 'seiva', Port. *suco*
*kwíjã*~*kwíñã* 'suco; doce', Port. *agüinha*
*báhe *'matar, surrar', Port. *ba-ter*
*djými* 'desaparecer', Port. *sumi-r*
*ke *'cair', Port. *ca-ir*
*ke*, *kéda *'queimar', Port. *que-imar*
*atáku* 'formigão', Port. *ataca-r* (talvez "formigas que atacam"?)
*bai *'marreco', Port. *pa-to*
*djiríri* 'rã', Port. *perere-ca*

Só aqui já temos 32 semelhanças; com certeza eu poderia encontrar mais,
sobretudo se eu puder usar outras línguas indo-europeias (considere
*á-ci *'olho',
irlandês *súil*; *ási-kidju* 'orelha', russo *ухо *[úxo]*, *etc.), será que
eu poderia demonstrar que o Taruma é uma língua indo-europeia? Obviamente,
não, sobretudo porque a história de todos esses termos indo-europeus é bem
conhecida e não intercepta em nenhum momento a história dos termos Tarumas
que se lhes assemelham.

Tudo isto sugere que a região do baixo Amazonas tenha sido uma área de
> interação cultural, um fato que vem sendo também demonstrado por estudos
> arqueológicos. Dentro desta perspectiva, os Taruma devem ter sido um dos
> povos mercadores influentes desta área. Neste sentido, também é muito
> relevante mencionar que Rodrigues (1985:393) já apontara a ocorrência de
> contatos antigos, provavelmente nesta zona, "between the whole Tupi-Guarani
> family and North Amazonian Carib". Este é mesmo um assunto muito empolgante
> e certamente ainda há muito que descobrir. [...] Um outro dado muito
> importante é que os Taruma eram exímios comerciantes, mantendo contato com
> diversos povos amazônicos e da região das Guyanas, e sabe-se que o comércio
> tem forte implicação na conformação de esferas de interação cultural e na
> consequente difusão de empréstimos.
>
>

Ah, então você está vendo esses termos não como possíveis cognatos que
indiquem parentesco genético, mas como empréstimos, não é? Neste caso, há,
de fato, um bom número de palavras encontradas em muitas famílias
linguísticas norte-amazônicas distintas. Patience Epps, da UT-Austin, que
está estudando o assunto, chama-as "Wanderwörter", e salienta que estes não
se restringem à area do baixo Amazonas, encontrando-se, de fato, em uma
região mais extensa, desde o litoral das Guianas até aparentemente o
Equador.

E aqui eu tenho uma pergunta. Nós temos mesmo certeza que os Taruma ou
Tarumã mencionados na literatura mais antiga (Séc. 16, 17 lá perto da
confluência do rio Negro com o Amazonas) são os mesmos Taruma de
Schomburgk, Farabee, e os que eu encontrei em Maruranau na Guiana
ex-Inglesa? Afinal, há casos de grupos étnicos diferentes com nomes
semelhantes ou idênticos -- veja-se quantas tribos chamam-se Arara (vêm-me
logo à cabeça os Arara caribe, parentes próximos dos Ikpeng, e os Arara
tupi de Rondônia, que Nilson Gabas chama de Karo). Eu tentei achar algum
dado lexical, nem que fossem nomes de indivíduos ou de aldeias, dos
Tarumas/Tarumãs amazonenses, para comparar com o que eu coletei na Guiana,
e não consegui achar nada (vocês teriam achado algo?).

O próprio nome "Taruma" não parece ser de origem Taruma (o termo que
coletei como autodenominação é "kudjásy"). Pensei que fosse um termo tupi
ou até tupi-guarani, talvez um nome de algum animal ou planta. A Wikipédia
portuguesa me dá um termo /tarumã/ como sendo o nome de uma árvore
frutífera, *Vitrex montevidensis*, encontrada no sul e sudeste do Brasil,
bem como na Argentina e no Paraguai (veja-se também
http://www.esalq.usp.br/trilhas/fruti/fr01.htm). Há também um município de
Tarumã no interior de São Paulo, bem como (ainda de acordo com a Wikipédia)
bairros chamados Tarumã em Curitiba, Manaus e Viamão (cidade do interior do
Rio Grande do Sul). Esta localização geográfica é compatível com uma origem
tupi (e o site
http://www.apremavi.org.br/noticias/apremavi/521/taruma-a-azeitona-do-mato
de fato afirma uma origem tupi, traduzindo "tarumã" como "fruta escura de
fazer vinho" em "tupi-guarani"... Será sem dúvida preciso encontrar uma
fonte mais fidedigna, mas tudo isso parece apontar para uma origem tupi
meridional para o nome /taruma/ ou /tarumã/. Caso em que, como é que esse
nome foi parar em um grupo norte-amazônico? (Talvez via o bairro Tarumã de
Manaus? Há também um "igarapé Tarumã" perto de lá; não sei se o nome indica
que há esta árvore por lá, ou alguma outra parecida, ou alguém simplesmente
gostava dessa árvore e deu-lhe o nome ao bairro / ao igarapé; e talvez daí
tenha passado a um grupo indígena local, com autodenominação totalmente
diferente...).

Seja como for, volta a perguntar: que certeza temos que a identificação que
Loukotka (e Schomburgk antes dele) faz entre os Taruma da Guiana e os
Taruma/Tarumã do Rio Negro / Amazonas é realmente válida?


Abraços,

Sérgio
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