[etnolinguistica] Prefixos relacionais
Eduardo Rivail Ribeiro
erribeir at MIDWAY.UCHICAGO.EDU
Sat Feb 8 02:58:46 UTC 2003
Prezado Sérgio,
Muito obrigado pelo sumário lúcido e inteligente. Sim, concordo com você;
celebremos, portanto, com guaraná.
Como venho tentando enfatizar desde o começo, minha preocupação é
eminentemente comparativa. Sempre fiz questão de afirmar que,
sincronicamente, a análise de Reis e Salanova faz sentido (como faria também
sentido uma análise alternativa, em termos de prefixos). E, em Macro-Jê (não
apenas em Jê, mas também em Ofayé, Karirí e Karajá), há claramente os
famigerados prefixos. Não me importaria se a reconstrução revelasse, no
final, que as alternâncias eram morfofonêmicas. O meu interesse era levantar
a possibilidade de que o mecanismo seja reconstruível para a proto-língua.
Não vou repetir meus argumentos aqui -- porque estou cansado desse assunto
(e imagino que todo mundo esteja) e, por mais prazer que eu tivesse em
continuá-lo, tenho minhas obrigações com a tese, que não é, aliás, uma
reconstrução do Macro-Jê). Para os interessados no assunto, minhas idéias
estão expressas naqueles artiguinhos que mencionei. [Aliás, Serjão (e demais
colegas interessados), ficaria feliz se vocês pudessem dar uma olhada e me
dissessem o que vocês acham, a partir de uma perspectiva comparativa com o
Karib e o
Tupí.]
Mas é interessante levar em consideração as conseqüências disso tudo para a
análise do Tukajê, como você menciona: seria curioso se prefixos relacionais
fossem inovações em Tupi-Guarani, Macro-Jê e Karib, e o resto do Tupi
resistisse incólume (levando em consideração as próprias probabilidades de
que o Denny fala de passagem). Isso se a hipótese Tukajê está correta (e eu
acredito que esteja)...
> E, de fato, a presença de alternâncias iniciais é um
> argumento aceitável para a inclusão de uma língua na
> família celta -- se essas alternâncias ocorrerem exatamente
> nos contextos certos, e se seus padrões corresponderem
> regularmente aos padrões da família, etc.
Legal. Volto a isso na minha mensagem sobre o morfema h(e) do Mawé (que era,
afinal, o assunto que eu estava discutindo no princípio).
Abraços,
Eduardo
----- Original Message -----
From: "Meira, S." <S.Meira at let.leidenuniv.nl>
To: <etnolinguistica at yahoogrupos.com.br>
Sent: Friday, February 07, 2003 4:32 PM
Subject: [etnolinguistica] Prefixos relacionais
> Amigos,
>
> Estive acompanhando a discussão entre Eduardo e Adres
> sobre prefixos relacionais. Como o assunto me parece
> interessante, gostaria de ver se estou entendendo bem.
>
> (a) Se entendo bem, a diferença de opinião entre Eduardo
> e Andres se refere à interpretação de dados (já bem conhecidos)
> sobre alternâncias envolvendo raizes em diferentes contextos
> morfológicos (contiguidade vs. não-contiguidade a um argumento).
> Com base nos mesmos dados, Eduardo postula a existência de
> um prefixo, enquanto que Andres postula uma regra de alternância
> na consoante inicial (perda, ou aférese, em Membengokre). Certo?
>
> Parece-me, no caso, que a discussão não é tanto empírica
> quanto teórica. Vocês parecem discordar sobre que argumentos
> são necessários para se atribuir a um dado elemento o "status"
> de afixo, ou para atribuí-lo à raiz da palavra. Correto?
>
> Em outras palavras: se temos
>
> (a) Xvcvc...
> (b) vcvc... Yvcv...
>
> onde vcvc... representa algum tipo de argumento de X/Yvcv...,
> temos um prefixo ou não? Eis alguns argumentos:
>
> Andrés observa que:
>
> (a) em Membengokre, a consoante X não é predizível
> a partir do resto da raiz;
>
> (b) não há o termo livre, sem X ou Y (isto é, não há um
> paradigma triforme, X-Y-0, contiguo-a-argumento,
> terceira-pessoa, forma-de-citação.
>
> (c) não há raízes flexionáveis que comecem com X e que não
> participem dessa alternância -- i.e. não há X's estáveis.
>
> Eduardo observa que:
>
> (b') não é necessário um paradigma X-Y-0 para se
> deduzir que algo é um elemento morfológico independente.
> Por exemplo, ele observa que, no verbo cantar, a raiz
> cant- pode ser isolada apesar de não existir nenhuma
> palavra "cant".
>
> (c') Eduardo observa que há alguma evidência para
> a existência de palavras com a primeira consoante
> (X) estável em línguas Jê (o termo para 'semente',
> se não me engano).
>
> (d') Eduardo observa que o fenômeno em questão
> corresponde de modo regular a alternâncias semelhantes
> que ocorrem em outras línguas da (possível) família
> Macro-Jê, bem como em Tupi e Karíb, e que poderiam
> servir de evidência para um relacionamento entre essas
> três famílias (uma hipótese que eu gosto de chamar
> "hipótese Tu-Ka-Jê").
>
> Está certo o resumo acima?
>
> Pelo que vejo, o problema é mesmo uma questão de
> teoria morfológica. A discussão, claramente, deveria
> prosseguir a nível teórico. O que é um prefixo? E quando
> sabemos que um existe? É ou não é importante que
> haja uma forma-0 para se admitir a análise prefixal?
> É ou não é necessário que se expliquem as várias
> formas que o 'prefixo' pode tomar de um ponto de vista
> fonológico sincrônico?
>
> Eu adiantaria: não creio que a resolução da questão
> teórica em si (a qual, por sinal, é bastante interessante)
> afete as conclusões de Eduardo e de Andres. Já que:
>
> (a) Andrés discute um fenômeno sincrônico do
> Membengokre, e, como ele mesmo admite, não
> haveria nenhum problema se, historicamente, as
> alternâncias atuais proviessem de um prefixo (seja
> do Proto-Jê, do Proto-Marco-Jê, ou do Proto-Tukajê).
>
> (b) A possibilidade das alternâncias em Membengokre
> não serem mais sincronicamente atribuíveis a um prefixo
> concatenativo independente não impede que as correspondências
> que Eduardo menciona em seu artigo sejam perfeitamente
> razoáveis. Afinal, um elemento independente pode perfeitamente
> tornar-se parte de uma raiz, e também ser cognato com
> elementos ainda independentes em outras línguas. O
> prefixo latino per- está tão perfeitamente integrado à
> raiz da palavra "perguntar" em português, que poucos
> se dão conta dele (a parte "guntar" é, de fato,
> a mesma que o verbo "contar": *per-contare > perguntar).
> Este prefixo per-, apesar de não existir sincronicamente
> em português, é ainda cognato com prefixos sincronicamente
> identificaveis em outras línguas Indo-Européias (ver-
> em alemão, pre- em russo, etc.).
>
> (c) Além disso: mesmo que a análise sem prefixos
> prevaleça, isso não impede que as alternâncias
> sejam comparadas e delas se derive um argumento
> para o parentesco entre as línguas em questão.
> O argumento de parentesco não depende, por si,
> da existência de um prefixo, mas da existência
> de uma regularidade com correspondências regulares
> entre as várias línguas. Nas línguas celtas, por
> exemplo, prevalece a análise não-prefixal:
> as alternâncias (ou mutações, como as chamam
> os estudiosos da família celta) são analisadas
> como fenômenos que afetam as consoantes iniciais
> das raízes. Isso, no entando, não impede que se
> possam comparar, e até reconstruir, as alternâncias
> para vários níveis intermediários dentro da família,
> de modo a rastreá-las até suas origens. (No caso
> em questão, por curiosidade, trata-se da perda de
> vogais finais que causavam a lenição da consoante
> seguinte. Por exemplo, em um sintagma nome-adjetivo,
> havia uma vogal final que marcava o feminino: N-a A-a.
> Esta vogal -a provocava a lenição da consoante inicial do
> adjetivo. Quando ocorreu a perda das vogais finais,
> o feminino passou a ser indicado unicamente pela
> alteração da consoante inicial do adjetivo. Há fenômenos
> semelhantes em certas línguas latinas, como o corso.)
> E, de fato, a presença de alternâncias iniciais é um
> argumento aceitável para a inclusão de uma língua na
> família celta -- se essas alternâncias ocorrerem exatamente
> nos contextos certos, e se seus padrões corresponderem
> regularmente aos padrões da família, etc.
>
> Ou seja, o problema de o padrão em questão contribuir
> com um argumento a favor da família Tukajê é independente
> da análise morfológica desse padrão. Ambas as questões
> são interessantes, e merecem ser discutidas.
>
> Assim como é possível que um antigo prefixo
> tenha se tornado parte da raiz, não se pode excluir
> a idéia de que uma antiga parte da raiz tenha virado
> prefixo. Por exemplo: o Denny argumenta, com dados de Mawé,
> Gavião e Suruí, que seria perfeitamente possível passar de
> uma língua com o padrão X-Y-X (i.e. com a mesma forma para
> citação e posse por argumento nominal, mas com uma forma
> diferente para posse de terceira pessoa) para o padrão X-Y-0 através da
> perda da consoante inicial da forma de citação. Perfeitamente
> possível. Só que, sincronicamente, isso não precisa afetar
> a análise das línguas Tupí-Guarani como possuindo prefixos
> relacionais. Bastaria dizer que a queda da consoante inicial
> da forma de citação levou ao surgimento de um prefixo relacional,
> se aceitarmos que o padrão X-Y-0 basta para justificar a
> análise prefixal. Mas, nesse caso, o sistema anterior, X-Y-X,
> não teria prefixos; e isso teria conseqüencias para a reconstrução
> do sistema em Proto-Tupi, e sua futura comparação com os
> sistemas reconstruídos do Proto-Karíb e do Proto-Jê.
> (Por sinal, digo de passagem que a situação em Mawé é
> um pouco mais complicada: as duas formas para 'nome',
> /het/ e /set/, ocorrem no paradigma de posse, com prefixos
> diferentes: /e-set/ 'teu nome', /u-het/ 'meu nome'; a segunda
> pessoa plural é /e-het/ 'vosso nome', e se distingue de 'teu
> nome' somente pela alternância h/s.)
>
> Concordam comigo? Pois então podemos
> todos tomar cerveja (no meu caso, guaraná).
>
> Sérgio Meira.
>
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