[etnolinguistica] Prefixos relacionais
Meira, S.
S.Meira at LET.LEIDENUNIV.NL
Sat Feb 8 11:49:13 UTC 2003
Prezado Eduardo,
A questão da análise do mecanismo relacional parece
sempre gerar as mesmas polêmicas em famílias diferentes.
Entre os caribistas, há o Spike Gildea (que analisa o y- karíb como
um prefixo relacional), o Henk Courtz, no Suriname (que diz:
"é tudo fonologia, é só pra quebrar hiato"), e euzinho, que fico
em cima do muro, às vezes tendendo pra um lado, às vezes
pro outro. Quanto à análise de padrões sincrônicos, o que você
acha da não-previsibilidade da forma da consoante extra em
Membengokre que o Andres menciona no artigo ? E da aparente
falta de raizes não alternantes (estáveis)? Você acha que um
tal padrão bastaria para favorecer uma análise morfofonêmica?
Acrescento aqui alguns dados relativos a Karib (que o Aryon
talvez tenha mencionado no trabalho dele; eu ainda não o vi):
em algumas línguas, ocorre um (possível) prefixo y- em verbos,
nomes e posposições nos contextos esperados (quando se forma
sintagma, etc.). Assim, temos em Hixkaryana:
n-ama-no ama-ko wewe y-ama-no
3A-derrubar-Psd derrubar-Imper árvore R-derrubar-Psd
'Ele a derrubou' 'Derrube-a' 'Ele derrubou a árvore'
Note-se, contudo, que há complicações. Assim, há ablaut
(metafonia) da vogal inicial de raizes começadas por /e/:
n-eny-o t-he-txe y-ony-o
3A-ver-Psd 3Rfl-esposa-Pos R-ver-Psd
'Ele a viu.' 'Ele viu sua própria esposa.'
Este y- ocorre também entre os prefixos de pessoa e as
raízes verbais. Mas, em certas línguas, ele muda de forma.
Assim, em Waiwai, ele é y- com a primeira pessoa e w- com
a segunda. Note-se tambem que ele não co-ocorre com
o prefixo de primeira pessoa dual (como se os dois
ocupassem a mesma posição na estrutura da palavra)
ewto 'aldeia' (forma não-possuída, de citação)
o-y-ewto-n 'minha aldeia'
a-w-ewto-n 'tua aldeia'
ewto-n 'aldeia dele'
k-ewto-n 'aldeia de nós dois'
S. y-ewto-n 'aldeia de S.'
Note-se que em Waiwai não há metafonia; já em Hixkaryana,
há, sim, metafonia. Para variar, menciono aqui um paradigma
do Katxuyana, onde há também metafonia:
oremu 'canto, canção' (forma não possuída, de citação)
y-oremu-ru 'meu canto'
o-oremu-ru 'teu canto'
eremu-ru 'canto dele'
k-oremu-ru 'canto de nós dois'
S. y-oremu-ru 'canto de S.'
Em outras línguas, este y- desapareceu quase completamente.
Em Tiriyó, por exemplo, existe ainda a metafonia, mas não há
nenhum y- relacional (ê = xuá); o y- de primeira pessoa é
interpretável como um alomorfe do yi- que ocorre com raízes
começadas por consoante (yi-pana 'minha orelha').
êwa 'corda' (forma não possuída, de citação)
y-ewa 'minha corda'
ê-ewa 'tua corda' (/êe/ forma uma só sílaba)
ewa 'corda dele'
k-êwa 'corda de nós dois'
S. ewa 'corda de S.'
Persistem alguns casos de y- em formas lexicalizadas.
Por exemplo, um certo tipo de cobra é chamada
/parawayêkêi/, que os Tiriyós já não analisam mais;
mas, considerando-se que a palavra para 'cobra' é
/êkêi/, podemos observar aqui um antigo sintagma
/parawa y-êkêi/; ora, /parawa/ é o nome de um tipo de
papagaio. Há vários outros exemplos deste tipo.
Há também alguns casos como /omi/ 'língua, palavra',
que, ao ser possuído, torna-se /yomi/ (assim,
'minha língua' = /yi-yomi/). Com base nisto, pode-se
concluir que o Tiriyó já teve um /y-/ em sua morfologia
(tenha ele sido um prefixo ou uma parte da raiz).
Os y- são tradicionalmente analisados como
prefixos (Derbyshire segue essa escola). O fato
de não haver imprevisibilidade de forma, ao contrário
do Membengokre (é sempre um y- com raízes iniciadas
por vogal, e zero com raízes iniciadas por consoante),
e também a existência de formas-0 (sem nenhum prefixo)
tende, creio, a favorecer a hipótese prefixal. Mas as
metafonias, e também a passagem a w- em Waiwai
(e em outras línguas; em Wayana, há w- em todas
as pessoas), tornam este prefixo uma unidade morfológica
um tanto misteriosa. E também o fato de que ele
não parece co-ocorrer com o prefixo de primeira
pessoa dual inclusiva k- (nós dois) é um tanto
suspeito. Não sei bem como interpretar este fato:
será porque o y- era parte da raiz, e k+y levou
à perda do y por causa de alguma mudança histórica
regular? Não sei... Ou será que o y- era mesmo um
prefixo de algum tipo, e que ele ocupava a mesma
posíção que o k- dentro da palavra? (Neste caso,
é necessário dizer que o k- ocorre em uma posição
diferente da dos demais prefixos de pessoa. Este
k- '1+2' (nós dois) tem, de fato, algumas propriedades
estranhas. ele é homófono -- ou será o mesmo? --
ao k- que, em verbos transitivos, marca primeira pessoa
agindo na segunda -- 'eu te...' -- ou segunda agindo
na primeira -- 'tu me...' . Em suma, é como se ele
marcasse 'não envolvimento da terceira pessoa' -- assim,
'eu te...', 'tu me...', ou 'nós dois juntos'. Infelizmente, este
k- também marca 'terceira pessoa agindo na primeira
e segunda' -- 'ele nos...'. Oops. Alguém já sugeriu que
a 'terceira pessoa' de fato não estivesse presente no
sentido deste morfema; que ela seria um 'sujeito default',
estereotipicamente pressuposto se não houvesse nenhum
sujeito de primeira ou segunda especificamente marcado
por prefixos. Isso permitiria eliminar a terceira pessoa
do k-, e voltar à idéia de que ele seria um marcador
de não-envolvimento da terceira pessoa, e que pertenceria,
assim, a algum tipo de paradigma relacional. Teríamos
assim: uma forma de contiguidade (marcada com y-),
uma forma de não-contiguidade (que outros chamam
'de terceira pessoa'), um forma livre ou de citação (sem
nenhuma pessoa marcada), e uma forma de não-terceira-
pessoa (marcada com k-). Muito estranho e meio ad-hoc,
mas já houve quem propusesse algo assim. Pessoalmente,
essa hipótese não me agrada; é muito ad-hoc. E eu também
acho (como você, Eduardo, com respeito ao Tupí) que as
formas de terceira pessoa em Karib são, de fato, formas
de terceira pessoa, e não 'formas de não-contiguidade').
Mas ainda não há solução definitiva; e assim a coisa vai...
Quanto à reconstrução dos padrões: seria interessante,
acho eu, para se ter uma primeira idéia, mapear quais
famílias têm fenômenos desse tipo, ou resquícios dele,
e quais não tem. Há alguma alternância deste tipo em
Pano, Maku, Nambikwara, Txapakura, Arawak, Arawá,
etc.? Nas isoladas de Rondônia? Em famílias não-
amazônicas (Guaikurú?). Em segundo lugar, creio que é
preciso observar se há ou não correspondências regulares
entre os casos observados. No seu artigo, Eduardo, eu pude
ver que o padrão é, de fato, muito parecido nas línguas
mencionadas, e que a forma dos possíveis relacionais
é semelhante (em geral uma palatal). Mas essas
correspondências são regulares dentro da família?
Eu noto a presença de mais de um reflexo em algumas
línguas (você menciona j- e dZ- para parakatêjê, ts- e j-
para timbira, j- e ñ- para apinajé, dz- e ñ- para xavante).
Claro, são todas formas foneticamente próximas; mas há
variação entre esses sons em outros contextos nessas
línguas? E há outras exemplos, independentes do
possível relacional, de correspondências entre esses
sons, provenientes dessas línguas? Eu não vi nenhum
exemplo no seu artigo. (Talvez o Davis fale a respeito;
mas eu não conheço o trabalho dele; infelizmente não sou
jeólogo, e não tenho como avaliar o *z dele. Acho só que
mostrar outros exemplos dessas correspondências daria
mais material para os não-jeólogos poderem ter uma
opinião.)
Hmmm.. A minha intenção era só escrever uma ou
duas linhas, e acabei me extendendo demais. Também
não quero que ninguém perca muito tempo (e eu, afinal,
deveria estar terminando de escrever um artiguinho que
prometi pra antes de anteontem...).
Sérgio
P.S. -- Cometi um errinho ao enviar esta mensagem; acho que
todos vão recebê-la duas vezes (uma das quais sem texto).
Mil perdões.
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