[etnolinguistica] Ortografia e ortografias

Meira, S. S.Meira at LET.LEIDENUNIV.NL
Sat Jul 12 00:06:02 UTC 2003


Prezados colegas,

Fico muito contente que esteja ocorrendo uma discussão sobre
sistemas de escrita para línguas indígenas, um assunto de grande
importância e interesse para todos os lingüistas de campo.
Não me considero um grande especialista na área, já que a minha
experiência foi, até agora, pequena. Participei da elaboração
de materiais de alfabetização para os tiriyó, do norte do Pará, 
e espero poder auxiliar os bakairi do Mato Grosso na mesma direção;
isso foi tudo. Contudo, ofereço aqui alguns exemplos do tipo de
problemas que encontrei, e teço algumas considerações sobre qual
me parece ter sido o papel dos lingüistas e dos falantes nesses
problemas.

Entre os tiriyó, a ortografia foi sendo desenvolvida nas décadas
de 60 e 70 por missionários não-lingüistas (franciscanos alemães),
que mudaram de idéia repetidas vezes sobre o melhor jeito de se escrever.
Isso, creio, porque há duas vogais centrais -- um "schwa" e um "i central --
que, por muito tempo, não foram reconhecidos como tais;
e, mesmo depois de reconhecidos, foram escritos inconsistentemente 
(basicamente, parece-me, quando os missionários o ouviam) por um bom
tempo. O resultado desta primeira época parece ter sido (segundo os
relatos dos missionários atuais, comentando a atuação de seus 
predecessores) que, apesar de um entusiástico esforço para ensinar
os tiriyó a ler em sua língua materna, ninguém conseguiu fazê-lo.
O esforço foi abandonado por algum tempo, até que novos missionários
conseguiram desenvolver um sistema que levava em consideração essas
duas vogais; a partir daí, o esforço foi mais bem-sucedido.

Quando iniciei minha pesquisa de campo junto aos tiriyó, vi que, 
do ponto de vista segmental, a ortografia em vigor funcionava bem.
O único problema era que a língua possui vogais longas, que ocorrem
com bastante frequencia (em certas palavras, a quantidade vocálica
é o marcador de segunda pessoa, diferenciando-a da terceira; em outras,
ela marca o presente-progressivo, diferenciando-o do passado). 
Lembro-me de um falante (um professor indígena) que entendeu perfeita-
mente o problema quando eu lhe mostrei as palavras em questão.
Disse-me ele então que, em certa ocasião, enquanto lia em voz alta
uma tradução dos envangelhos durante a missa, ele leu erradamente
a palavra escrita "türeke" (="armado"), causando a hilaridade de
todos os presentes em um momento que deveria ter sido sério e reflexivo.
"A gente às vezes não reconhece a palavra com suficiente rapidez", 
disse-me ele. "Mas, se eles tivessem escrito tüüreke, com dois ü, 
não teria havido problema...". (A escrita com dois ü's era a sugestão
que eu estava fazendo a ele.)

Este é, claramente, o tipo de problema que um lingüista pode ajudar
a evitar. Ele pode ajudar na criação de sistemas que diminuam ao
mínimo a necessidade de "reconhecer a palavra com suficiente rapidez"
para não se enganar na pronúncia. Não quero dizer que haja uma 
única possibilidade para cada caso, nem que a teoria fonológica 
da lingüística seja a única resposta para todos os casos (de fato,
a relação entre análise fonológica e ortografia prática me parece
um tópico de pesquisa e reflexão fascinante); mas quero, sim, dizer
que o lingüista pode ajudar a evitar a criação de sistemas que
dificultam a vida do falante. Não é apenas que haja variação na
escrita de algumas poucas palavras, mas sim uma falta de instrumentos
para escrever certos sons que os autores do alfabeto desconsideraram
ou talvez nem chegaram a perceber. As situações mais difíceis, como
o caso das vogais do Karajá que o Eduardo descreve, me faz pensar
em pessoas tentando cortar o tronco de uma árvore com machados de plástico e
papel. Há aqui algo que um lingüista pode ajudar a resolver.

É claro que o lado político da situação também deve ser levado em conta.
Afinal, não é apenas porque um sistema é mais prático ou mais fácil de
usar que ele vai se popularizar. Volto aqui ao caso dos tiriyó. Em uma
reunião com as lideranças indígenas, eu expus o problema das vogais longas,
apresentando pares mínimos (pedi aos presentes, quase todos mais ou menos
alfabetizados, que os escrevessem, e observei como eles se espantavam que
palavras tão obviamente diferentes parecessem ter a mesma escrita. Alguns
espontaneamente escreveram duas vogais; outros 
acrescentaram sinais diacríticos do português. Quando mostrei-lhes
os resultados, havia uma preocupação bastante evidente: que fazer
com essas palavras. Depois de alguma discussão, ficou decidido o uso
das vogais dobradas. Com o auxílio dos professores, foi produzida e
corrigida uma cartilha.

Contudo, um dos indivíduos mais influentes (o que melhor fala português
entre os tiriyó) não estava presente na ocasião. Quando ele viu a 
cartilha, já impressa e publicada, não lhe agradaram as vogais dobradas,
que ele considerou "erradas". Como ele tem bastante influência, conseguiu
que fosse declarada "errada" a cartilha. Isso deixou os professores
que havia participado da confecção e correção com cara de burros. Eles
não gostaram disso, mas tampouco se dispuseram a ir contra a pessoa
em questão. Como resultado, continua ainda em discussão o futuro dessa
cartilha, e da necessidade ou não de se escreverem vogais dobradas em
tiriyó.

Evidentemente, o aspecto político da situação tem de ser levado em
conta. Em minhas discussões com os tiriyó, mostro sempre o aspecto
técnico: se as vogais longas forem escritas, o sistema fluirá com
mais rapidez e menos confusões. Mas, se o tiriyó que não gostou das
vogais longas vencer, é possível que os materiais a serem impressos
sigam o seu ponto de vista e não contenham vogais dobradas. Embora
eu veja isso como uma perda (um sistema que funciona melhor é sempre,
ceteris paribus, mais adequado do que um que funciona menos bem),
e creia que isso implicará em maior esforço para os futuros leitores 
de livros nessa língua, eu também vejo que a questão política -- a
decisão final -- cabe aos índios. Sempre que consultado, mostrarei
as minhas razões; mas, se a conclusão final for que as vogais dobradas
não serão usadas, darei de ombros 





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