Contribui ção Indígena para a cultura brasileira atual .

Eduardo Rivail Ribeiro kariri at GMAIL.COM
Sun Oct 25 21:13:37 UTC 2009


Prezado Beni,

Excelente idéia esta, do documentário. Eis aqui alguns palpites. Em geral, as contribuições lingüísticas são boas pistas para se chegar a contribuições à cultura material e espiritual, porque, em geral, o uso de um nome indígena para um item ou uma prática cultural indica uma origem indígena para os mesmos (por exemplo, na culinária, o pirão, o mingau, a paçoca -- denominados por nomes indígenas -- são óbvias contribuições indígenas). Às vezes há surpresas interessantes -- como é o caso de 'quarar', discutido aqui antes, ou o da 'moqueca', que, apesar do nome indígena, é geralmente vista como uma contribuição africana. Porque, afinal, a Língua Geral acabou ultrapassando barreiras étnicas (sendo falada, por exemplo, no Triângulo Mineiro, por mestiços de Boróro e negros).

Como a Língua Geral era a língua do povo, é natural que nos tenha legado denominações para itens do cotidiano que, em última instância, não são propriamente de origem indígena. Por exemplo, 'paqüera', que se refere a entranhas, miúdos (em geral, de porco ou bovino, animais de origem exótica); ou 'suã' (também de porco). Ou 'quirera', que se refere a fragmentos de grãos (qualquer um, incluindo os de origem exótica, como o arroz). Ou 'quarar' (roupas, afinal, não ocupavam muita importância entre os indígenas brasileiros).

Os hábitos de higiene, como você menciona, são um bom exemplo de provável influência indígena. Sobre isto, uma fonte excelente é Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil, Caminhos e Fronteiras, etc.), que contrasta bem o comportamento dos nascidos no Brasil, acostumados, como os índios, a banhos diários, e o de portugueses recém-chegados. Um caso anedótico, que ele menciona, é o de um alto funcionário português que fez a longa jornada de São Paulo a Cuiabá sem tomar um banho sequer, causando estranheza entre os paulistas que o acompanharam na viagem.

Há, claro, contribuições gerais para uma cultura nacional -- caso de alguns dos itens culturais mencionados acima. Mas é necessário resistirmos à tentação de ver as contribuições indígenas como algo monolítico no país. Há certas culturas regionais que herdaram -- ou preservaram -- mais de nossos ancestrais indígenas. O caboclo amazônico e o caipira, por exemplo. A catira, ainda praticada por caipiras em Goiás, Minas etc., é de origem indígena. E há crenças relacionadas à vida cotidiana que são herdadas diretamente de nossos ancestrais indígenas. Esta é uma diferença essencial entre uma herança puramente econômica (caso do milho ou da abóbora, digamos, nos EUA) e uma herança cultural mais integral, em que práticas econômicas são imbuídas de um sistema de crenças. Entre os lavradores da minha região, por exemplo, há uma maneira "correta" de se arrancar a mandioca; se o sujeito gemer, prejudica a qualidade da raiz. É uma crença que talvez tenha vindo dos índios, que foram, afinal, os que nos ensinaram a plantar mandioca. Qualquer um pode plantar mandioca, claro; mas as crenças associadas ao plantio, isto em geral é o que se adquire de pai para filho, desde os índios até o caipira atual.

Outra prática ainda usada entre os caipiras é a do mutirão, também de origem indígena (http://www.etnolinguistica.org/tupi:mutirao).
E práticas como estas tendem a desaparecer, com a urbanização, a escolarização, etc. Portanto, tendem a ser melhor preservadas em ambientes rurais e relativamente isolados. Um fato interessante é que, na segunda metade do século XIX, os caipiras paulistas ainda preservavam muitas palavras da língua geral que seriam depois substituídas por palavras do português. Isto é relatado em uma passagem pouco conhecida do livro Viagem ao Araguaia, de Couto de Magalhães (que comentei em meu blog: http://tr.im/avati). Ao valorizarmos nossa herança indígena, devemos valorizar também o caipira, o caboclo, o sertanejo, que são, afinal, os que nos ancoram a nossas raízes.

Meu penúltimo palpite diz respeito a um preconceito a ser evitado. É comum ouvir-se, em discussões sobre o Tupinambá, que teria sido "nossa língua original", "a língua de nossos ancestrais".  Por mais que a intenção seja exatamente oposta (nacionalista e nativista), isto tem na verdade um viés colonialista. As línguas de nossos ancestrais eram centenas e a contribuição indígena para a formação genética e cultural do brasileiro provém de uma diversidade de povos. O caráter unificante da Língua Geral, que tanto favoreceu a colonização e, possivelmente, a unidade nacional, não deve obscurecer o papel de tantos povos indígenas, anônimos ou não, na construção da cultura brasileira. A ênfase exagerada no Tupinambá resulta numa injustiça para com os demais povos indígenas, muitos dos quais ainda sobrevivem entre nós. Basta ver quantas cidades evoluíram a partir de aldeias ou aldeamentos indígenas para perceber-se que nossos ancestrais indígenas não são necessariamente índios Tupí extintos há séculos. Um exemplo de estudo genético demonstrando isto, com relação aos Botocudos e seus descendentes em uma pequena cidade de Minas, pode ser acessado no seguinte endereço:

http://www.etnolinguistica.org/media:jan2005

Finalmente, há o que eu chamaria de "implantes culturais" -- aspectos do folclore dito "brasileiro" cuja ampla distribuição deve-se mais à mídia e aos velhos livros de Educação Moral e Cívica do que a uma herança cultural propriamente dita. Por mais que eu seja fã do Sítio do Pica-Pau Amarelo, sacis e boitatás nunca foram parte de meu universo cultural, por mais que meus livros escolares tentassem promovê-los como "cultura nacional". Claro que não são pura invenção -- devem ser, afinal, parte da cultura tradicional de algum lugar. Mas não da minha.

Abraços,

Eduardo

--- Em etnolinguistica at yahoogrupos.com.br, "Beni Borja" <beni at ...> escreveu
>
> Prezados, 
> 
> Estou escrevendo o roteiro para um documentário que versa sobre a contribuição indígena para a formação da cultura brasileira atual. 
> 
> Me interessaria muitíssimo ouvir de vocês suas opiniões gerais sobre o tema ,e especialmente coisas específicas que fazemos hoje cujas raízes são , ou podem ser, indígenas. 
> 
> Naturalmente, a contribuição linguística tem uma parte essencial nessa história que eu estou montando, mas além dela temos muitíssimos comportamentos sociais, de como comemos,bebemos,dançamos,nos asseamos  etc... que tem óbvia contribuição indígena.  Meu interesse é tanto comportamental, quanto factual. 
> 
> Compreendo a natureza científica desse grupo, e peço perdão antecipadamente pelo meu questionamento ser ligeiramente ¨off-topic¨, mas me pareceu que os integrantes desse grupo poderiam dar uma contribuição muito rica para esse meu projeto.  Pediria a vocês que se despissem por um momento, do rigor científico e me falassem das suas experiências pessoais e das idéias que você tem sobre o tema ,mesmo que elas não tenham comprovação material. 
> 
> Como se trata de uma pesquisa para um roteiro em construção, preciso nesse momentos mais de pistas e questionamentos do que própriamente afirmações categóricas, 
> 
> Agradecendo desde já as contribuições , 
> 
> um abraço, 
> 
> Beni Borja
>


-------------- next part --------------
An HTML attachment was scrubbed...
URL: <http://listserv.linguistlist.org/pipermail/etnolinguistica/attachments/20091025/82615c57/attachment.htm>


More information about the Etnolinguistica mailing list