[etnolinguistica] Recapitulando

Andres P Salanova kaitire at MIT.EDU
Thu Feb 6 16:04:06 UTC 2003


Alô Eduardo

Não se frustre; eu só pedi um esclarecimento e ganhei uma
ofuscação. Se estou insistindo é porque os argumentos empíricos (se os
há) não me convencem. E argumentar sobre bases conceituais só vai nos
conduzir a mais frustrações, porque eu não compartilho sua idéia de
que a análise diacrônica é "o panorama mais amplo", especialmente se a
sincronia não é bem compreendida.

Apesar do que Luciana e Marília e Ludoviko tenham falado, e do que eu
mesmo me senti tentado a falar no passado, os "prefixos relacionais"
das línguas Jê não são a mesma coisa que você descreve em Tupinambá,
no parágrafo que citei na mensagem anterior. Em Tupinambá, você tem
evidências independentes de que o prefixo é um prefixo, e você tem um
"paradigma" com três formas, uma das quais é zero. Em Jê setentrional,
você tem um par de "pre-segmentos" em oposição, mas nenhuma evidência
de que eles sejam prefixos. O ponto essencial da minha análise do
Mebengokre (i.e., unificar eles com a flexão de terceira pessoa) não
depende de que a manipulação morfológica seja simples, como é no caso
do Mebengokre. So depende (repito) de que não haja evidências
sincrônicas para considerar o "pre-segmento" um prefixo em oposição
com outro, e separável do radical. Se a análise sincrônica é correta
(e podemos mesmo debater isto), então, no ramo meridional os prefixos
nao estao porque as linguas do ramo desenvolveram uma forma diferente
para o pronome de terceira pessoa (que, so de passagem, nao acho que
seja tao nova), o ramo central nao tem prefixos relacionais nao sei
porque, e no ramo setentrional so ha uma alternancia que e chamada
"prefixos relacionais" por inercia, mas que nao tem as mesmas
caracteristicas dos prefixos relacionais do Tupinamba. Concluo que não
há "prefixos relacionais" propriamente ditos em nenhuma língua da
família Jê. Portanto "o panorama mais amplo" me parece um pouco
desolador.

> O que eu disse é que a sua aférese
> 'coincidentemente' ocorre em lugares em que, em outras línguas do tronco (e
> da família), temos claramente um prefixo. Por que a 'lenição' não ocorre com
> as raízes para 'semente', por exemplo? Ou ocorre? E por que a sua 'aférese'
> ocorre em
> todos os ambientes em que *z ocorreria em Proto-Jê, inclusive em posição
> medial?

Bem, pra começar, *z é um artefato de Davis, não é uma realidade que
pode desconfirmar uma análise sincrônica consistente. Em Mebengokre
ele corresponde a /j/ em algumas palavras (jajkwa), e a /'/ em outras
('y). Talvez em posição V_V ele desaparece por completo. Você diria
que ele corresponde a /j/ quando ele é um prefixo, e a /'/ quando ele
não é, se interpreto bem. Seria tão ou mais fácil (pois, como já
perguntei na mensagem anterior, o que faria que a consoante de um
prefixo escapasse da obrigação de ter correspondências regulares nas
línguas atuais?) reconstruir dois segmentos no lugar de um. Não sei
nada de reconstrução, mas aposto uma cerveja que você obtém os mesmos
resultados desta maneira.

> E não é engraçado que a sua lenição em Mebengokre vai exatamente na
> direção inversa do que ocorre em outras línguas?

Não entendi. Você quer dizer que dj -> zero é lenição mas j -> s não
é? Tem razão, mas eu não prometi lenição pra todo mundo.

> Portanto, quando eu disse que concordo com sua análise,
> não implico, com isso, que não concorde com análises alternativas. De fato,
> em termos de economia, sua análise e as demais chegam a resultados
> idênticos. Em ambas as análises, itens lexicais precisam ser lexicalmente
> especificados como pertencentes a uma ou outra classe morfológica.

Não, acho que aqui você se engana.

> demais línguas da família e do tronco. Em comparação com a análise
> 'ingênua', sua análise deixa mais perguntas por responder (apesar de -- ou

Novamente, acho que voce se engana. Cf. abaixo.

> por causa de -- toda a maquiagem teórica que você tenta usar).  Uma delas,
> extraída do seu artigo (p. 233), é a seguinte:

> "Resta determinar por qué precisamente estas consonantes son afectadas por
> el proceso de aféresis. Esta pregunta tendrá que esperar un estudio
> comparativo más profundo con otras lenguas de la familia para ser respondida
> de manera satisfactoria."

E verdade, mas isto, antes de ser a ultima palavra, deveria ser o
início de uma discussão um pouco mais produtiva, com base em
argumentos empíricos. No meu ver, na análise do Mebengokre que é
apresentada nesse trabalho, as seguintes perguntas são respondidas:

	- Por que o outro prefixo de 3a pessoa que existe em
Mebengokre (ku-) tem um comportamento similar à marcação de pessoa por
aférese.
	- Por que não ocorre aférese em nomes próprios (nhiakrekampi),
por dentro de morfologia derivacional (bixadjwyry), nos radicais
verbais quando eles não são flexionáveis (djua, nhy), e em certas
palavras que podem ser tanto alienavais quanto inalienaveis, quando
elas nao sao possuidas (djudje).
	- Por que não há palavras flexionáveis em Mebengokre iniciadas
em consoante palatal "estável", e no entanto ha muitas palavras
iniciadas por vogal (isto nao tem muito a ver, mas em algum lugar foi
dito que era uma maneira de decidir a qual classe pertenceria uma
determinada palavra).

Outrossim, mostramos de maneira cabal que não é necessário especificar
no léxico quais palavras sofrem aférese e quais não, pois TODAS as
palavras flexionáveis que começam com determinadas consoantes sofrem
aférese. As consoantes que caem formam mormente uma classe natural, e
não são de nenhum modo "especiais", i.e., ocorrem de maneira "estável"
em posição medial e em início de palavras não flexionáveis.  Aposto
outra cerveja que se eu fizer um experimento com logatomas ("blicks")
inalienaveis iniciados em "dj", "nh" e "j" em Mebengokre, os falantes
vao flexionar eles na terceira pessoa tirando a consoante
inicial. Muito estranho se voce precisasse indicar no lexico a "classe
flexional" da palavra.

Acho que os argumentos apresentados nesse trabalho podem se estender a
outras línguas, para defender que as alternâncias no início do radical
são o reflexo de apenas uma categoria morfológica, e não duas, como no
caso do Tupinambá. Faz tempo que repito o verso para todo jeólogo que
conheço, e o único contra-argumento aceitável (i.e., não conceitual)
que ouvi até agora foi da Roseane, que constata que o "x" inicial não
cai em "xer" em Pykobye (algo sobre o que poderiamos conversar tb.)

> Se posso aventurar uma resposta para a questão acima: seria, talvez, porque
> essas consoantes correspondem de fato a prefixos nas outras línguas, que
> alternavam com um outro prefixo cujo reflexo fonológico é zero em
> Mebengokre?

Sim, sem dúvida alguma. Só que não são prefixos.

> Talvez seria interessante, para o começo, separar os casos de
> 'aférese' em que restam vestígios da consoante 'apagada' dos casos em que
> tais 'vestígios' não ocorrem. Se você comparasse os dados do Mebengokre com
> os de outras línguas da família, talvez percebesse que ambos os tipos de
> 'aférese' têm origens diacrônicas um tanto diferentes (e continuam se
> comportando diferentemente em Mebengokre, ao que parece).

Não entendi; você tem algo específico em mente? Em Mebengokre restam
vestigios da consoante apagada em quase todos os casos, pois "dj" e
"j" vao pra [h], na verdade, nao propriamente pra zero. So que, vai
saber por que, quem fez a analise fonemica do Mebengokre achou que [h]
e zero eram a mesma coisa. Acho que esta certo: todas as palavras
iniciadas em vogal podem comecar com um pouco de aspiracao.

> No caso das 'gradações' nas línguas célticas, se me lembro bem, consoantes
> oclusivas tendem a se comportar de maneira semelhante, como uma classe
> natural. Este não é, naturalmente, o caso da família Jê.  Mesmo os exemplos
> interessantíssimos das línguas celtas derivam, em última instância, de
> fatores fonológicos.

Acho que não dista de ser o caso do Mebengokre, pois caem todas as
consoantes palatais iniciais de palavras flexionáveis. E não duvidaria que
o condicionamento inicial possa ter sido fonológico, mas isso
contradiz diretamente sua proposta de encontrar "paralelos claramente
concatenativos".

> Se a sua explicação é,
> como nas línguas celtas, postulando regras morfologicamente condicionadas de
> ensurdecimento ou vozeamento,
> lenição ou reforço, ou seja o que for, tanto faz. No final, é um mecanismo
> morfológico (quer você o trate como uma regra de afixação ou de alteração
> sub-segmental), que encontra paralelos mais conservadores (claramente
> concatenativos) em outras línguas do tronco. É tudo o que importa, no meu
> caso -- que, enfatizo, estou interessado simplesmente em aplicar o método
> histórico-comparativo ao estudo deste e outros assuntos nas línguas
> Macro-Jê.

Não discordo de que seja morfológico; longe disso. Aliás, acredito ter
provado que não é possível fazer uma análise fonológica do
processo. Simplesmente não admito suas evidências de que haja
"paralelos claramente concatenativos" na família Jê. Se os há em
Tupinambá ou Kariri, que bom. As evidências que ligam Kariri com Jê,
se chegarem a vinte cognatos putativos, sem correspondências
regulares, já é muito, e as que ligam Tupi com Jê não vão muito além,
com toda franqueza. Se você quer apoiar a hipótese de parentesco entre
estas famílias num fato morfológico isolado, deveria ter certeza de
que você está comparando duas coisas equivalentes. Senão você vai
chegar às mesmas conclusões que Greenberg (cuja musiquinha é *t'ina,
t'ana, t'una).

> O exemplo acima aplica-se estritamente ao Karajá, é bom enfatizar. Não estou
> insinuando de maneira alguma que seria a mesma coisa no caso do Mebengokre
> (como disse, concordo com sua análise; acho-a sincronicamente eficiente e
> repito: não tenho o menor interesse em mudá-la).  Mas confesso que tendo a
> desconfiar de análises que tendem a complicar o que é simples. É muito
> engenho, pouca arte. Teorias são feitas para explicar os dados, não para
> complicá-los.

Tem razao; portanto acho que há três ou quatro questões, apresentadas
acima, que devem ser explicadas em Mebengokre (e provavelmente também em
muitas línguas relacionadas), e que são explicadas de maneira simples
assumindo uma morfologia não concatenativa quase trivial, que tem
paralelos em outros sistemas não aparentados. Aliás, "morfologia
subtrativa" ocorre plausivelmente em outros lugares do Mebengokre e
Suyá, como aponta Ludoviko (c.p.), v.g., na formação do radical
"finito" dos verbos (em que há simples apócope em um número grande
deles). Portanto, acho que longe de nos ajudar a achar a melhor
descrição sincrônica, meter a diacronia no meio joga a crianc,a fora
junto com a agua do banho, a troco de nada ou quase nada.

Nao vou lhe dizer como fazer linguistica diacronica, pois disso eu nao
sei nada. Mas fiquei muito mais empolgado com suas primeiras
mensagens, em que voce falava dos "aplicativizadores nominais", do que
com sua defesa da existencia de prefixos relacionais em Je. Acho que
para ter um quadro melhor do que o de Davis (cuja reconstrucao nao e
mais do que um Apinaye camuflado) e necessario fazer como ele faz, e
reconstruir "de dentro pra fora", pois dessa maneira os detalhes
importantes nao se perdem em favor do "panorama".

Bem, e isso; espero que a discussao continue; as listas sao pra isso,
afinal. Espero que outra hora a gente possa continuar a conversa tomando
umas cervejas (tomara que sejam no minimo duas).

Ate,
	Andres

Andres Pablo Salanova
http://mit.edu/kaitire/www




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