[etnolinguistica] Algumas notas sobre prefixos relacionais

Eduardo Rivail Ribeiro erribeir at MIDWAY.UCHICAGO.EDU
Thu Jan 30 20:24:48 UTC 2003


Prezado Dioney,

Estou lendo o seu artigo (que está, por sinal, muito interessante).  Muito obrigado por enviá-lo. Ainda estou na parte do artigo que trata de prefixos relacionais em Mundurukú.  Antes de continuarmos esta discussão, acho necessário fazer um esclarecimento sobre o que eu chamo de relacionais (que não parece ser exatamente a mesma coisa que você considera como relacionais). Como Rodrigues (1953), eu considero como relacionais apenas os prefixos  que marcam 'contigüidade' com itens da classe II (em geral, uma consoante alveolar ou palatal lene, nas diversas línguas: d- em Karajá e Mundurukú, dz- e y- em Kariri, etc.). Acho o uso do termo 'relacional' para se referir a marcadores de terceira pessoa ou a uma profusão de afixos zero um equívoco. Se levarmos esta prática um pouco mais longe, acabaríamos chegando à conclusão de que toda e qualquer língua que estabeleça distinções gramaticais entre nomes obrigatoriamente possuídos e nomes alienavelmente possuídos (e que use marcadores de terceira pessoa como default, o que é extremamente comum) teriam prefixos relacionais, o que esvaziaria o valor do termo (que tem, eu creio, excelente valor diagnóstico das relações genéticas entre Tupí, Macro-Jê e Karib). Acho que o uso de marcadores de terceira pessoa (i-, t- e seus equivalentes nas demais línguas) como 'marcadores de não contigüidade' é meramente uma conseqüência da obrigatoriedade de certos itens lexicais ocorrerem com seu argumento absolutivo. Caso o nome (ou verbo, ou adposição) não seja diretamente precedido de seu determinante, o prefixo de terceira pessoa é usado.  No caso de verbos, por exemplo, isto não seria muito diferente do que ocorre em inglês, com o uso do it expletivo. Deveríamos, então, chamar it de 'relacional de não contigüidade'? Naturalmente, acho que não.

Relacionais em Mundurukú (e Tupí-Guaraní). Como você diz no seu artigo, a classe II em Mundurukú "está reduzida a poucos elementos, pois o que era prefixo tornou-se parte da raiz" (página 5). Parece claro que o uso de prefixos relacionais em Mundurukú acabou sendo obscurecido pelo surgimento de uma regra fonológica regular de alternância entre oclusivas surdas e sonoras, como você explica (página 7). Portanto, no caso dos prefixos relacionais da classe II (repito: os únicos que trato como prefixos relacionais propriamente ditos), como você diz, "sincronicamente, afora as palavras para casa e flecha, não se pode tratá-los como prefixos" (página 7).  Daí a minha conclusão de que prefixos relacionais em Mundurukú são de fato raros. Não é por acaso que estas duas palavras referem-se a itens que são, em geral, alienavelmente possuíveis. Como em Karirí (vide era 'casa', udza 'faca', etc.) tais itens podem ocorrer 'nus', sem prefixo algum, exatamente porque são alienavelmente possuíveis; postular a existência de 'relacionais de não contigüidade' neste caso seria uma extrapolação desnecessária, creio eu. Apesar de serem menos comuns, itens como estes demonstram que o valor do prefixo t- (e seus equivalentes nas demais línguas) é de fato uma marca de terceira pessoa (ou 'não pessoa', como queiram). A distinção entre as classes I e II é puramente morfológica (certamente com uma motivação fonológica, diacronicamente) e, por isso, ambas as classes incluem tanto itens alienáveis quanto itens 'inalienáveis'.

Pode parecer, em princípio, que tudo isso não passe de picuinhas terminológicas. Mas vai muito além, resultando em diferentes concepções sobre a gramática das línguas atuais (bem como de uma hipotética proto-língua). Tenho notado uma tendência generalizada, em descrições mais recentes de línguas Jê e Tupí(-Guaraní), de se criarem lacunas descritivas artificiais, no que diz respeito às séries de prefixos pessoais: todas estas línguas teriam marcadores de primeira e segunda pessoas, mas não de terceira. Que isto ocorra em diversas línguas do mundo, não resta dúvida (tenho em mente o trabalho clássico de Benveniste a respeito das diferenças em tratamento gramatical entre a terceira e as demais pessoas). Mas, no caso do Jê e Tupí-Guaraní, trata-se na grande maioria dos casos de uma lacuna artificial, resultante da explosão demográfica de 'prefixos relacionais', de acordo com as preferências teórico-descritivas dos autores. Uma das explicações que ouvi para o tratamento generalizado de prefixos de terceira pessoa como 'relacionais de não contigüidade' tem a ver com o fato de que os prefixos d- e t- ocupam paradigmaticamente a mesma posição.  Isto é, naturalmente, a non sequitur.  Se me lembro bem das aulas de morfologia que tive com Aryon Rodrigues nos idos de 1994, relacionais, como o nosso d-, são (ou teriam sido originalmente) marcas de contigüidade sintática, não morfológica. Mais uma vez, isto confere aos relacionais aquele valor diagnóstico a que me referi antes: se um determinado morfema pronominal não requer o uso do prefixo relacional, ligando-se diretamente à raiz, isto provavelmente significa que este morfema pronominal já era um prefixo no tempo em que relacionais surgiram. No caso do Tupí-Guaraní, isto significa simplesmente que t- (e, parece-me, também o morfema de terceira pessoa co-referencial o-) já seriam prefixos muito antes de outros morfemas pessoais terem se tornado morfologicamente dependentes (vide, a respeito disso, o artigo do Spike Gildea nos anais do Encontro de Belém; Gildea 2002).

Uma hipótese sobre a marcação de pessoa em Proto-Macro-Jê.  De volta ao Macro-Jê, há fortes evidências de que não apenas o marcador de terceira pessoa (s- em Karirí, *z- em Proto-Jê, t- em Karajá, etc.), mas o de segunda pessoa também já seriam prefixos na proto-língua. Isto é claramente sugerido pela comparação de dados do Karirí (1), do Karajá (2) e do Ofayé (3) abaixo.  Com itens da classe II, o prefixo de segunda pessoa liga-se diretamente à raiz, sem prefixo relacional. Se Tupí e Macro-Jê são de fato relacionados geneticamente, é provável que o Tupí tenha inovado na marcação de segunda pessoa; o Macro-Jê (mais uma vez) se mostraria mais conservador. [Nos exemplos abaixo, uso 0 'zero' para marcar o prefixo de segunda pessoa que ocorre com itens da classe II; é provável que este prefixo tenha a mesma origem do prefixo que ocorre com itens da classe I (a- em Karajá, e- em Ofayé), tendo caído ou se fundido com a vogal inicial dos temas da classe II; em Karirí, é a primeira vogal da raiz que cai.]

(1) Kariri

dz-udza 'minha faca'
a-dza 'tua faca'
s-udza 'faca dele'

[Há evidências para se considerar este tipo de paradigma, chamado de 5a. declinação por Mamiani, como o mais conservador; é o que sugiro no meu artigo sobre o morfema alienador em Karirí, arquivado na página do grupo; neste caso, dz- seria originalmente o prefixo relacional; vide exemplos Ofayé abaixo para desenvolvimento paralelo.]

(2) Karajá

habu d-ebo 'mão do homem'
wa-d-ebo 'minha mão'
0-ebo 'tua mão'
t-ebo 'mão dele'

(3) Ofayé

kaxoro x-egi 'rabo do cachorro'
x-egi 'meu rabo'
0-egi 'teu rabo'
h-egi 'rabo dele'

[Resta determinar se as formas de primeira pessoa em Ofayé são resultado da extensão do uso do prefixo relacional para formas de primeira pessoa (algo que se acha com algumas raízes em Karajá e até mesmo Tupinambá) ou têm uma origem independente.]

Uma hipótese sobre a origem do prefixo relacional.  Como a breve discussão dos dados Macro-Jê acima sugere (a respeito da segunda pessoa), é possível que, originalmente, teria havido uma única série de prefixos pessoais, comuns a ambas as classes.  Uma hipótese seria que tanto i-, quanto t- e d- seriam reflexos de um único marcador de terceira pessoa, digamos *i-.  A ocorrência deste prefixo antes de raízes começadas por vogal favoreceria sua 'assilabificação' (algo assim ocorre sincronicamente com os prefixos i- e u- em Mundurukú, por exemplo). Teríamos, então, *i- alternando com uma forma assilábica, *j- ou *dz-, suponhamos. Suponhamos que, nesta fase, construções como 'a casa do homem' fossem construídas de acordo com o modelo [homem sua-casa], como ainda ocorre em algumas línguas (Boróro, por exemplo; é isso mesmo, Adriana?).  Este *dz- ou *j- hipotético seria ensurdecido em certos ambientes morfossintáticos (ou seja, quando não precedidos de um nome ou pronome no mesmo sintagma). Teríamos, assim, a origem das alternâncias que se verificam hoje nas diversas línguas, envolvendo relacionais e marcadores de terceira pessoa. 
Talvez não seja difícil imaginar outro cenários -- por exemplo, um em que a forma assilábica do marcador de terceira pessoa seria a original (*t- > *r- > *j-). Mas, por enquanto, acho esta primeira alternativa mais plausível.

Considero os relacionais algo fascinante, especialmente pelo seu valor como evidência de parentesco genético entre línguas tão diversas.  Neste sentido, seria interessante, antes de tudo, termos uma terminologia razoavelmente uniformizada, para que saibamos se estamos falando da mesma coisa ou não.
Comparatistas que lidam com línguas de outras áreas não parecem ter tantos problemas assim em adotar termos que tratam especificamente de fenômenos daquelas línguas (construct state, para as línguas semíticas; medial, initial, and final roots, para as línguas algonquianas; etc.), por mais idiossincráticos que eles possam parecer para os 'não iniciados'. Acho o termo 'relacional' excelente, por ser teoricamente neutro e descritivamente eficiente. Mas há relacionais e 'relacionais'...

Mais uma vez, muitíssimo obrigado pela discussão dos dados do Mundurukú, e pelo envio do seu artigo.
Respondo a suas outras mensagens mais tarde.
Um grande abraço,
Eduardo

Referências:
RODRIGUES, Aryon. 1953. "Morfologia do verbo Tupi". In: Letras. 1:121-52. Curitiba.
GOMES, Dioney. 2003. A natureza clítica dos marcadores de pessoa em Mundurukú (manuscrito).Universidade de Brasília.
GILDEA, Spike. 2002. Pre-Proto-Tupi-Guarani main clause person-marking. In Cabral, Ana Suelly & Rodrigues, Aryon (editores), Atas do I Encontro Internacional do Grupo de Trabalho sobre Línguas Indígenas da ANPOLL, Tomo I, p.315-326.  Belém: UFPA.


----- Original Message ----- 
From: "Dioney Moreira Gomes" <dioney98 at unb.br>
To: <etnolinguistica at yahoogrupos.com.br>
Sent: Thursday, January 30, 2003 5:02 AM
Subject: Re: [etnolinguistica] Sobre o 'marcador de posse alienável' em Jê


> Eduardo,
> A flexão relacional tem papel fundamental no Mundurukú (não é rara), tanto com 
> nomes quanto com verbos, não ocorrendo com posposições. Ela é obrigatoriamente 
> evocada na relação i)de posse inalienável entre os nomes, ii)"sujeito" e verbo 
> intransitivo estativo ("verbo descritivo" para Crofts 1973,1985 e outros), e 
> iii)"objeto direto" e verbo transitivo. Além disso, iv) se o "sujeito" de verbo 
> intransitivo processual for classificado, haverá uma concordância entre ele e o 
> verbo também em nível de classificador, não só em nível de marca de pessoa, e 
> aparece o relacional de não-contigüidade:
> i) o 0-ba 'meu braço' // João 0-ba 'braço de João' // i-ba 'braço dele'
> ii)o 0-parara 'eu tenho medo' // João i-parara 'João tem medo
> iii) João bio   o'   y-aokat
>      (j.  anta  3Sa  NCNT-matar)
>      'João matou a anta.'
> iii) João ako    0-ba   o'  su-ba   'o 
>     (J.   banana CNT-cl 3Sa NCNT-cl comer)
>      João comeu banana.
> iv) João o' at 'João caiu.' // ako 0-ba o' su-ba 'at  'A banana caiu.'
> 
> Bom, sendo o e- prefixo de alienabilidade e ocorrendo o relacional em situação 
> de posse inalienável, não parece haver compatibilidade entre um prefixo e 
> outro. 
> Quanto ao exemplo de Angotti que você citou, creio que carece de um pouco mais 
> de reflexão sobre o que é este "e-". Reafirmo que relacionais não são raros em 
> Mundurukú e te envio, em anexo, uma cópia de um texto em que discuto a natureza 
> clítica dos marcadores de pessoa em Mundurukú e em que falo também das classes 
> nominais e dos relacionais.
> Um grande abraço.
> Dioney
> 
> p.s.: usei o número "0" acima para indicar o morfema relacional zero de 
> contigüidade (classe I: i- e 0-). Acima, aparecem alguns alomorfes do morfema 
> de não-contigüidade i-: "su-" e "y-".

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