Imprensa: "A origem de Zuzu"

Eduardo Ribeiro kariri at GMAIL.COM
Sat Sep 22 16:12:00 UTC 2007


Matéria da revista Pesquisa Fapesp (
http://www.revistapesquisa.fapesp.br/?art=3330&bd=1&pg=1&lg=)

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*A origem de Zuzu
*Crânio do Piauí reforça idéia de que grupos humanos fisicamente distintos
ocuparam a América do Sul há 10 mil anos
Reinaldo José Lopes

A saga de Zuzu, um esqueleto humano de 10 mil anos de idade considerado um
dos mais importantes da pré-história brasileira, pode sofrer uma reviravolta
se uma nova análise de suas características morfológicas estiver correta.
Anos atrás um estudo indicou que Zuzu era uma mulher – daí o apelido. Mas
detalhes do crânio e da pelve sugerem que, na verdade, se trata de um homem.
Mais importante: um homem com traços intrigantes. Embora tenha morrido entre
os 35 e os 45 anos de idade onde hoje é o Piauí, ele se encaixaria com
perfeição entre o povo que viveu há milhares de anos na região de Lagoa
Santa, em Minas Gerais – uma gente com traços físicos muito distintos dos
apresentados pelos índios modernos e próximos aos dos aborígenes da
Austrália.

Essa análise é um dos primeiros frutos da colaboração entre o grupo
coordenado pela arqueóloga Niède Guidon, da Fundação Museu do Homem
Americano (Fumdham), sediada no Piauí, e o do bioantropólogo Walter Neves,
do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos da Universidade de São Paulo
(USP). Depois de vários anos com visões conflitantes sobre como e quando os
seres humanos modernos teriam chegado à América, ambos os grupos resolveram
deixar de lado certa animosidade e explorar as possíveis intersecções entre
suas linhas de pesquisa.

Zuzu é justamente um desses pontos em comum. Encontrado em 1997 pela equipe
de Niède no rico complexo pré-histórico do Parque Nacional Serra da
Capivara, o esqueleto é um dos mais antigos da América do Sul, mais velho
inclusive que a grande maioria das dezenas de crânios e outros ossos humanos
encontrados em Lagoa Santa. Nas últimas décadas, Neves e seus colegas têm se
dedicado a mostrar que esses primeiros habitantes da América do Sul, os
paleoíndios, tinham aparência física muito distinta daquela dos indígenas
modernos. Com seus crânios longos e estreitos, além da mandíbula e de outros
ossos da face mais projetados para a frente, os paleoíndios de Lagoa Santa
lembram os atuais povos africanos ou os nativos da Austrália e da Melanésia,
enquanto os indígenas modernos têm claras semelhanças com os povos
originários do nordeste asiático, também conhecidos como mongolóides.

Neves e seus colaboradores já mostraram que mais de 80 crânios de Lagoa
Santa, com idade entre 12 mil e 8 mil anos, enquadram-se na chamada
morfologia australomelanésia. Essa gente representaria, para os
pesquisadores brasileiros, a primeira leva de imigrantes a chegar às
Américas. Para mostrar que a população antiga dessa região mineira não é uma
mera idiossincrasia gerada pelo isolamento, crítica feita por outros
especialistas em pré-história das Américas, a equipe da USP partiu para a
investigação de crânios de outras partes do Brasil e das Américas.
"Declaramos guerra contra quem duvidava da ocupação da América do Sul por
povos com morfologia australomelanésia", resume Neves. "Essa estratégia de
pegar amostras de vários lugares é uma forma de cercar a questão, para que
não se possa mais usar o argumento de que a população de Lagoa Santa é
aberrante."

Desde então, além de um trabalho independente feito pelo antropólogo
argentino Rolando González-José, que achou a mesma morfologia de Lagoa Santa
entre índios mexicanos do século XVI, a equipe da USP identificou esses
traços no Chile, na Colômbia, no Vale do Ribeira, interior de São Paulo, e
entre os índios botocudos, que ocuparam o Brasil Central no período
colonial. Faltava, no entanto, saber onde se encaixava a importante
população do Piauí, cujo representante mais antigo com crânio preservado é
Zuzu.

É aí que entra o convite de Niède para que Neves e seus colaboradores
examinassem o crânio. A dúvida sobre o sexo de Zuzu já pairava havia algum
tempo. Embora uma análise de DNA feita em 2002 pendesse para o lado
feminino, os artefatos achados com o esqueleto causavam certa dúvida. "O
sepultamento incluía uma série de artefatos de pedra, entre eles duas pontas
de lança", conta Mark Hubbe, ex-aluno de Neves e hoje pesquisador da
Universidade Católica do Norte e do Museu Arqueológico de San Pedro de
Atacama, no Chile. "Esses artefatos, teoricamente, favorecem a idéia de que
seja um esqueleto de homem", diz Hubbe, co-autor da análise apresentada num
artigo a ser publicado no American *Journal of Physical Anthropology*.

Além dos artefatos que, acredita-se, fossem de uso exclusivo masculino, uma
análise antropológica anterior já havia sugerido que Zuzu poderia ser apenas
um homem de ossatura pouco robusta. No trabalho atual, Hubbe e Neves
revisaram detalhes – principalmente do crânio e da pelve – que ajudam a
determinar o sexo. Também compararam as semelhanças entre o crânio piauiense
e o de nativos dos cinco continentes. Os resultados mostraram uma associação
estreita do crânio de Zuzu com o dos paleoíndios da Colômbia e de Lagoa
Santa, que apresentam traços classificados como negróides, semelhantes ao
dos africanos, aborígenes australianos e nativos da ilha de Páscoa.

Niède não se surpreendeu com o resultado da análise, que atribui a Zuzu
traços aborígenes semelhantes ao do povo de Lagoa Santa. "Lagoa Santa não
está tão longe assim do norte de Minas Gerais e do rio São Francisco. Como
esses grupos viviam da caça e da coleta de alimentos, facilmente poderiam se
espalhar pelo território", diz a arqueóloga. "Com esses trabalhos,
praticamente esgotamos a investigação dos esqueletos disponíveis de
paleoíndios da América do Sul. Finalmente estamos progredindo em convencer a
comunidade científica internacional de que dois grupos com características
físicas distintas devem ter entrado no continente", comenta Hubbe. E, do
ponto de vista morfológico, o esqueleto parece realmente pertencer ao sexo
masculino.

Neves elogia a disposição de seus colegas do Piauí para trabalhar em
conjunto. "Niède foi extremamente aberta à cooperação", diz Neves. Para a
pesquisadora da Fumdham, ainda é preciso definir se será feita uma nova
análise de DNA em Zuzu para eliminar de uma vez por todas a dúvida sobre se
era homem ou mulher, informação importante para se descobrir se havia
diferenças rituais no enterro de homens e mulheres. "Essa é uma discussão
que está no campo dos antropólogos físicos", comenta Niède. "Se acharem
necessário, faremos a análise."
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