[etnolinguistica] Recapitulando

Eduardo Rivail Ribeiro erribeir at MIDWAY.UCHICAGO.EDU
Wed Feb 5 21:48:42 UTC 2003


Caro Andrés,

> Acho que chegamos onde pretendia chegar, apesar de que chegamos ali de
> maneira um pouco tortuosa. Vamos assumir que este é um exemplo de um

Acho que, de fato, não chegamos a lugar algum.  Mais uma vez, repito: não
tentaria mudar sua análise do  Mebengokre -- primeiro, porque não conheço a
língua (além do pouco que aprendi lendo o artigo de vocês, 'Verbo y
ergatividad escindida') e, segundo, porque, como eu disse, sincronicamente
sua análise faz sentido. Mas, repito de novo: meu interesse é basicamente
histórico-comparativo. Se em certas línguas os prefixos relacionais
perderam o seu caráter morfológico, paciência. Acontece em várias outras
línguas (inclusive com alguns exemplos do Karajá). Tudo o que me interessa é
demonstrar que o prefixo é reconstruível para a proto-língua (o que línguas
como o Karirí e o Karajá -- e se brincar, até mesmo o Kaingáng! --
demonstram a contento). Só isso.


> correta.  Se a palavra /xqux/ significa "casa", e a palavra /yqux/
> significa "casa dele", não segue que {qux} é a raíz e {x} e {y} o
> paradigma relacional, especialmente se {x} e {y} são segmentos
> similares, como /t/ e /d/, /z/ e /j/ ou até /h/ e /s/ (esp. em línguas
> em que estas são as únicas consoantes +cont, -soante). A flexão por
> lenição em galês de Applecross é um belo exemplo disto (i.e., da
> morfologia manipulando unidades sub-segmentais).
>
> Bem, imagino que nesta altura você possa achar que estou dizendo o
> mesmo que você diz só que com um formalismo rebuscado. Não creio que
> assim seja, mas em todo caso fica pra próxima.


Não vejo formalismo rebuscado algum no raciocíonio acima. É apenas uma
aulinha de morfologia, que eu agradeço. Mas, sinceramente: será que você leu
todos os exemplos que lhe enviei?
Estou começando a ter uma sensação terrível de frustração, como se estivesse
desperdiçando o meu tempo, já que você se apega a detalhes e parece perder
vista do panorama mais amplo.  O que eu disse é que a sua aférese
'coincidentemente' ocorre em lugares em que, em outras línguas do tronco (e
da família), temos claramente um prefixo. Por que a 'lenição' não ocorre com
as raízes para 'semente', por exemplo? Ou ocorre? E por que a sua 'aférese'
ocorre em
todos os ambientes em que *z ocorreria em Proto-Jê, inclusive em posição
medial? E não é engraçado que a sua lenição em Mebengokre vai exatamente na
direção inversa do que ocorre em outras línguas?


> Realmente, se ha bons motivos diacrônicos para considerar que o
> "relacional" é um morfema separado, então ele é, e não será a primera
> vez que um morfema se congela e passa a ser parte do radical.  Mas não
> acho que os motivos são bons, e acho que o peso de demostrar que eles
> são recai em você (acho que você fez muito, mas poucas entre suas
> evidências dizem respeito à família Jê), especialmente se isto vai
> contra uma proposta de análise sincrônica que você reconhece como
> correta.  Se a palavra /xqux/ significa "casa", e a palavra /yqux/


A existência de prefixos relacionais em outras línguas da família Jê foi
demonstrada -- e muito bem, na minha opinião -- por lingüistas como Luciana
Dourado (para o Panará), Ludoviko dos Santos (para o Suyá) e Marília
Ferreira (para o Parkatêjê). Portanto, não creio que o 'peso de demonstrar
sua existência' recaia sobre os meus ombros. Já foi demonstrado. Agora,
quando eu disse que sua análise é sincronicamente correta, não havia nisso
elogio algum. Pelo contrário, havia uma censura: se enfatizo que está
SINCRONICAMENTE correta, é porque acho que, diacronicamente, é furada.

Fazer uma análise sincronicamente correta é o mínimo que se espera de
qualquer lingüista. É possível que uma análise alternativa, em termos de
prefixos relacionais e de terceira pessoa, seria igualmente correta; são, no
fim das contas, alternativas descritivas igualmente válidas, de um ponto de
vista sincrônico. Portanto, quando eu disse que concordo com sua análise,
não implico, com isso, que não concorde com análises alternativas. De fato,
em termos de economia, sua análise e as demais chegam a resultados
idênticos. Em ambas as análises, itens lexicais precisam ser lexicalmente
especificados como pertencentes a uma ou outra classe morfológica.

Agora, em termos comparativos, sua análise é menos eficiente do que a
análise 'ingênua' (para usar uma palavra sua) dos missionários do SIL,
porque ignora o grande número de evidências comparativas fornecidas pelas
demais línguas da família e do tronco. Em comparação com a análise
'ingênua', sua análise deixa mais perguntas por responder (apesar de -- ou
por causa de -- toda a maquiagem teórica que você tenta usar).  Uma delas,
extraída do seu artigo (p. 233), é a seguinte:

"Resta determinar por qué precisamente estas consonantes son afectadas por
el proceso de aféresis. Esta pregunta tendrá que esperar un estudio
comparativo más profundo con otras lenguas de la familia para ser respondida
de manera satisfactoria."

Se posso aventurar uma resposta para a questão acima: seria, talvez, porque
essas consoantes correspondem de fato a prefixos nas outras línguas, que
alternavam com um outro prefixo cujo reflexo fonológico é zero em
Mebengokre? Talvez seria interessante, para o começo, separar os casos de
'aférese' em que restam vestígios da consoante 'apagada' dos casos em que
tais 'vestígios' não ocorrem. Se você comparasse os dados do Mebengokre com
os de outras línguas da família, talvez percebesse que ambos os tipos de
'aférese' têm origens diacrônicas um tanto diferentes (e continuam se
comportando diferentemente em Mebengokre, ao que parece).

No caso das 'gradações' nas línguas célticas, se me lembro bem, consoantes
oclusivas tendem a se comportar de maneira semelhante, como uma classe
natural. Este não é, naturalmente, o caso da família Jê.  Mesmo os exemplos
interessantíssimos das línguas celtas derivam, em última instância, de
fatores fonológicos. Aliás, na minha primeira mensagem sobre esse assunto, é
exatamente o que sugiro como hipótese de origem para os relacionais: que
tudo tenha sido originalmente algo fonologicamente condicionado. Mas o
condicionamento fonológico desapareceu, e só se pode explicar o que se tem
nas línguas atuais morfologicamente (como em celta). Se a sua explicação é,
como nas línguas celtas, postulando regras morfologicamente condicionadas de
ensurdecimento ou vozeamento,
lenição ou reforço, ou seja o que for, tanto faz. No final, é um mecanismo
morfológico (quer você o trate como uma regra de afixação ou de alteração
sub-segmental), que encontra paralelos mais conservadores (claramente
concatenativos) em outras línguas do tronco. É tudo o que importa, no meu
caso -- que, enfatizo, estou interessado simplesmente em aplicar o método
histórico-comparativo ao estudo deste e outros assuntos nas línguas
Macro-Jê.

Sua tendência de tornar complicadas todas as coisas triviais de que trato me
lembra muito certas análises que surgiram para a marcação de direção em
Karajá, envolvendo alguma espécie de traço suprassegmental misterioso, que
caía do céu e nasalizava as consoantes. É uma análise curiosa (sem dúvida, à
primeira vista, mais interessante que afixação pura e simples, que é algo
monótono e comum), mas equivocadíssima (no caso do Karajá), resultado de uma
análise incompetente da morfologia da língua e do total desconhecimento da
fonologia da mesma. Acho morfologia não concatenativa fascinante, mas, já
que a grande maioria dos casos conhecidos desses fenômenos envolvem
explicações diacrônicas mais lineares (um afixo que desapareceu, deixando
vestígios, etc.), acho que qualquer lingüista com preocupações
histórico-comparativas acaba se perguntando: como será que isso surgiu? Por
mais fascinantes que sejam, explicações não concatenativas são o último
recurso explicativo, do qual só se lança mão quando as demais explicações,
mais 'triviais', falham.

O exemplo acima aplica-se estritamente ao Karajá, é bom enfatizar. Não estou
insinuando de maneira alguma que seria a mesma coisa no caso do Mebengokre
(como disse, concordo com sua análise; acho-a sincronicamente eficiente e
repito: não tenho o menor interesse em mudá-la).  Mas confesso que tendo a
desconfiar de análises que tendem a complicar o que é simples. É muito
engenho, pouca arte. Teorias são feitas para explicar os dados, não para
complicá-los.

Até logo,
Eduardo
























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