[etnolinguistica] Recapitulando
Andres P Salanova
kaitire at MIT.EDU
Wed Feb 5 04:44:33 UTC 2003
Alo Eduardo
> Recapitulando, vejamos, por exemplo, a raiz oka 'casa', em Tupinambá.
> Esta é a forma de citação, sem possuidor algum. O prefixo relacional r-
> ocorre quando esta forma é precedida de um possuidor nominal ou
> pronominal: Iracema r-oka, xe=r-oka. Além disso, há um prefixo de
> terceira pessoa, s-. Talvez exemplos como este deixem claro que a
> consoante inicial não é parte da raiz.
Acho que chegamos onde pretendia chegar, apesar de que chegamos ali de
maneira um pouco tortuosa. Vamos assumir que este é um exemplo de um
relacional verdadeiro. Voce mostra que em Tupinambá o "relacional" não
faz parte da raíz, já que você tem uma forma de citação que ocorre sem
os prefixos r- e s-. É precisamente isto que brilha por sua ausência
em Mebengokre e (talvez; nao tenho lido muito mais do que sobre duas
ou três) nas demais línguas propriamente Jê, apesar de que voce
apresenta algumas evidências de que isto existe em Kariri e Karajá,
das quais não duvido. (O caso do Kaingang também é interessante, mas
parece tratar-se mesmo de uma alternância entre o nome ser alienável
ou não). Também não há nenhum sinal (em Mebengokre etc.) de que
palavras mudem de "classe" (definida pelo prefixo relacional que
tomam) ao sofrerem alguma outra operação morfológica (tipo mudança de
valência ou categoria sintática). Portanto, não há motivos para supor
que sincronicamente o "relacional" seja um morfema separado do
radical. Imagino que com isto você concorda, pois é o que é defendido
no trabalho meu que saiu à tona estes dias.
Realmente, se ha bons motivos diacrônicos para considerar que o
"relacional" é um morfema separado, então ele é, e não será a primera
vez que um morfema se congela e passa a ser parte do radical. Mas não
acho que os motivos são bons, e acho que o peso de demostrar que eles
são recai em você (acho que você fez muito, mas poucas entre suas
evidências dizem respeito à família Jê), especialmente se isto vai
contra uma proposta de análise sincrônica que você reconhece como
correta. Se a palavra /xqux/ significa "casa", e a palavra /yqux/
significa "casa dele", não segue que {qux} é a raíz e {x} e {y} o
paradigma relacional, especialmente se {x} e {y} são segmentos
similares, como /t/ e /d/, /z/ e /j/ ou até /h/ e /s/ (esp. em línguas
em que estas são as únicas consoantes +cont, -soante). A flexão por
lenição em galês de Applecross é um belo exemplo disto (i.e., da
morfologia manipulando unidades sub-segmentais).
Bem, imagino que nesta altura você possa achar que estou dizendo o
mesmo que você diz só que com um formalismo rebuscado. Não creio que
assim seja, mas em todo caso fica pra próxima.
Meu comentário sobre Davis era precisamente tendo este tipo de flexão
"por lenição" em mente. Tem uma alternância entre /z/ e /j/. E dai?
Mesmo se /z/ existe, ele difere de /j/ por apenas um traço. (Não
entendi por que o fato de que /z/ é um prefixo exime ele de ter
correspondências regulares nas línguas contemporâneas.) Não há
portanto nada contra considerar o segmento como parte da raíz (o que,
aliás, os trabalhos de missionários do SIL sobre outras línguas Jê não
fazem; eles são bastante ingênuos neste ponto, e botam sempre um traço
entre o "relacional" e a raíz), e dizer que a flexão de pessoa é o
traço [+cont] ou algo assim.
Portanto, no melhor dos casos o que você demonstrou, na minha opinião,
é que línguas Tupi e Jê fazem uso de um mesmo recurso fonológico
(i.e., a manipulação sub-segmental ou a aférese) com finalidades
diferentes ("marcar contigüidade" em um caso, marcar flexão de
terceira pessoa no outro). (NB, ao dizer "fonológico" me refiro ao
aspecto fonológico de um processo morfológico, não a que algo é
resultado apenas da fonologia). A diferença funcional dessa
manipulação eu deduzo do fato de que o paradigma completo em Tupi
involucra três "prefixos", enquanto que em Jê envolve só dois. Tendo
em vista o paradigma Tupi que inclui {zero}, a análise correta da
parte "fonológica" do processo provavelmente NÃO envolva manipulação
sub-segmental em Tupi, o que torna a semelhança ainda mais
superficial. (Há maneiras de salvar a analogia, como dizer que as
línguas Jê têm um paradigma defectivo, etc., mas acho que ai se abrem
as portas a muitos outros problemas).
Se você mostrar que em alguma língua Jê /z/ e /j/ não só alternam
entre eles, senão que também alternam com {zero}, e isto tem a mesma
função que em Tupinambá, então realmente não me restarão dúvidas de
que há uma correspondência morfológica entre os dois troncos.
Desculpe se me limito apenas a discutir este ponto; as reconstruções
me inibem, e de qualquer maneira seria muito pouco o que eu poderia
contribuir nos demais assuntos. Fiquei curioso em saber o que é que
você rejeita como sendo "falso relacional" (apenas em Munduruku?),
pois pensei que coincidia com os "falsos relacionais" das línguas Jê.
Até breve,
Andres
Andres Pablo Salanova
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