[etnolinguistica] Recapitulando
Eduardo Rivail Ribeiro
erribeir at MIDWAY.UCHICAGO.EDU
Tue Feb 4 20:56:24 UTC 2003
Prezado Andrés,
Recapitulando: como menciono na minha primeira mensagem sobre o assunto 'relacionais', é bastante plausível que, originalmente, alternâncias entre prefixos relacionais e marcadores de terceira pessoa, como as que observamos em várias línguas Macro-Jê e Tupí, tenham sido fonologicamente motivadas. Mas, em todo caso, a motivação puramente fonológica teria desaparecido há muito tempo; em todas essas línguas, é impossível encontrar uma explicação puramente fonológica, sincronicamente. É provável, portanto, que tais alternâncias já existissem, como um mecanismo morfológico, na proto-língua.
Como tenho tentado demonstrar em meu estudo histórico-comparativo dos relacionais em Macro-Jê, é provavelmente possível reconstruir tais alternâncias morfológicas para o Proto-Macro-Jê. Para isso, baseio-me em métodos tradicionais da lingüística histórico-comparativa. Qualquer similaridade morfológica, por mais evidente que possa parecer, precisa ser confirmada por evidências lexicais e fonológicas. No caso do Macro-Jê, este parece ser claramente o caso. Daí a minha referência a Davis (1966) -- até agora, o único trabalho comparativo razoavelmente decente sobre as línguas Jê.
Apesar de se basear em dados pouco confiáveis (em grande parte dos casos), Davis fez um trabalho muito bom, apontando correspondências fonológicas que continuam válidas, regulares, mesmo para línguas (re-)descobertas depois, como o Panará. Os poucos enganos que Davis comete são, em geral, devidos à má qualidade das análises das diferentes línguas com que ele lida. Um dos problemas foi exatamente este: lingüistas do SIL geralmente analisaram o morfema relacional, ou o marcador de terceira pessoa, ou ambos, como parte da raiz, o que leva a algumas correspondências malucas na análise de Davis.
Mas, se observamos o trabalho do Davis mais cuidadosamente, essas correspondências 'malucas' envolvem apenas e justamente aqueles casos que apresentam alternâncias morfológicas nas línguas atuais. Davis não menciona alternâncias semelhantes para a raiz *zy 'semente', por exemplo (e, mais uma vez, não por coincidência, a consoante inicial nesta raiz não é um prefixo, mas parte da raiz, não apenas em Jê, mas também em Karajá ty, por exemplo). Também, se me lembro bem, Davis não menciona alternâncias para a raiz *ñi 'carne' (e, mais uma vez, é o que temos em Karajá, onde no provável cognato desta raiz, de 'carne', a consoante inicial é parte da raiz). Tais alternâncias também não ocorrem em posição medial.
Agora, nos casos em que há tais alternâncias, as correspondências morfológicas são claramente confirmadas por evidências lexicais. Por exemplo, 'mão', reconstruído por Davis como *ñ-ikra (na verdade, a nasalidade da consoante é um conseqüência da nasalidade da vogal seguinte), é uma das raízes que envolvem alternâncias morfológicas entre relacionais e marcadores de terceira pessoa (*z-ikra); não por acaso, o provável cognato desta raiz em Karajá, d-era 'antebraço', também envolve tais alternâncias (t-era 'seu antebraço', etc). Correspondências morfológicas, fonológicas e lexicais regulares -- é isto, e apenas isto, que uso como evidência de parentesco genético.
> Por outro lado, o /z/ de Davis pode ser qualquer coisa. Se ele so aparece
> nos ambientes #_V e V_V, ele pode ser tambem um segmento epentetico para
> quebrar hiatos, etc.
Não creio. Espero que a discussão acima (bem como minhas mensagens anteriores) tenha deixado claro o que penso do '*z de Davis. É uma consoante com distribuição típica de outras consoantes, com reflexos claros nas línguas atuais (h em Timbira, s em Panará, f em Kaingáng, etc.), tanto em posição inicial, quanto medial. *Ñ (que eu reconstruiria simplesmente como *j, nasalizado antes de vogal nasal) é também uma consoante típica, com distribuição ampla e reflexos claros nas línguas atuais. Aliás, como o prefixo marcador de terceira pessoa é um reflexo do Proto-Jê *z (ocorrendo, portanto, em começo de sintagma), a hipótese de que ele ocorra para quebrar hiatos cai por terra, não acha?
> Entendo que essa consoante inicial possa ser o vestigio de um
> aplicativizador nominal; mas na medida em que ha uma alternancia entre sua
> forma quando o possuidor ou objeto direto e "contiguo" ou nao, ha mais
> envolvido do que marcac,ao de posse alienavel. A nao ser que a proposta de
> analise seja (2) abaixo.
> liaison), ou (2) e um morfema que altera a valencia do verbo, talvez como
> os marcadores de voz das linguas austronesias (e neste caso nao se
> trataria da "contiguidade" do argumento, senao da sua posic,ao
> estrutural), ou (3) ele e pura e simplesmente flexao de pessoa. Se
> interpreto bem sua proposta, os "relacionais verdadeiros" sao (2), e os
> falsos relacionais sao (3), e ambos estariam relacionados diacronicamente.
Infelizmente, creio que aqui tenha havido um engano. Nunca disse que a consoante inicial (o prefixo relacional ou a marca de terceira pessoa) seja vestígio de um aplicativo nominal. A única instância em que os dois assuntos se misturaram, creio é, é a seguinte: é interessante que os morfemas que atuam como alienadores (ou aplicativos nominais, ou 'marcadores de posse alienável') pertençam, nas diversas línguas, à classe lexical que recebe prefixos relacionais. Isto corroboraria a hipótese de que estamos lidando com um morfema cognato nas diferentes línguas. O fato de que este morfema cria temas pertencentes à classe que recebe prefixos relacionais simplesmente sugere que ele tenha se gramaticalizado a partir de uma raiz desta classe. [Em português e outras línguas românicas, mesmo se não conhecêssemos bem a história, saberíamos que o sufixo -mente se gramaticalizou a partir de um nome feminino, por que exige adjetivos no feminino; relacionais oferecem argumentos semelhantes -- peculiaridades morfológicas reforçando hipóteses sobre a evolução gramatical de um dado morfema.]
Recapitulando, vejamos, por exemplo, a raiz oka 'casa', em Tupinambá. Esta é a forma de citação, sem possuidor algum. O prefixo relacional r- ocorre quando esta forma é precedida de um possuidor nominal ou pronominal: Iracema r-oka, xe=r-oka. Além disso, há um prefixo de terceira pessoa, s-. Talvez exemplos como este deixem claro que a consoante inicial não é parte da raiz. O interessante é que, quando o prefixo e- 'alienador' é afixado a uma dada raiz, o resultado é um tema da classe que recebe prefixos relacionais: kuya 'cuia'; xe=r-e-kuya 'minha cuia'. Isto é morfologicamente paralelo ao que ocorre em Panará, Ofayé, Karirí e outras línguas do tronco, como descrevo em meu artigo sobre o 'marcador de posse alienável' em Karirí. Portanto, digo que o morfema alienador é derivado diacronicamente de uma raiz da classe II; só isso.
Exemplos de outras línguas demonstram ainda mais claramente que raízes da classe dois são, de fato, começadas por vogal. Em Kariri, por exemplo, a forma de citação de 'casa' é, simplesmente, era. A forma de terceira pessoa é s-era; enquanto a forma com o prefixo relacional é y-era (hi=y-era 'minha casa'). Em Karajá, a distinção entre classe I e II envolve também verbos (como nas demais línguas), que recebem uma série bem diferente de prefixos flexionais. Mas, quando nominalizados, verbos da classe II se comportarão como nomes da classe II; e vice-versa. Por exemplo, a raiz para 'copular' é era. Em uso verbal, tal raiz se flexiona para direção e outras categorias típicas de verbos:
(1)
0-r-0-era=kre
3-DIR-INTR-copular=FUT
'Ele vai copular.'
A forma nominal desta raiz se comportará exatamente como outras raízes nominais da classe II (2). E, por outro lado, se incorporamos temas nominais da classe II, como era 'antebraço', a forma incorporada será a raiz 'nua' (3b). Espero que isto demonstre, mais uma vez, que a consoante inicial não é parte da raiz (ao contrário da análise sugerida por Fortune & Fortune, do SIL).
(2)
wa-d-era-dã 'minha prostituta'
0-era-dã 'tua prostituta'
t-era-dã 'prostituta dele'
etc.
(3)
(a)
0-r-a-kro=kre
3-DIR-INTR-quebrar=FUT
'Vai ser quebrado.'
(b)
0-r-0-era-kro=kre
3-DIR-INTR-antebraço-quebrar=FUT
'Vai ser antebraço-quebrado (ou seja, vai ter seu antebraço quebrado)'
Vou parando por aqui. Obrigado pela oportunidade de desenvolvermos este diálogo.
Abraços a todos,
Eduardo
----- Original Message -----
From: "Andres P Salanova" <kaitire at mit.edu>
To: <etnolinguistica at yahoogrupos.com.br>
Sent: Monday, February 03, 2003 10:30 PM
Subject: [etnolinguistica] Re: Algumas notas sobre prefixos relacionais
> Alo Eduardo
> Muito obrigado pelos seus esclarecimentos. Porem, ainda devo perguntar,
> o "relacional verdadeiro", o que tem de especial? Se e so o fato
> de que ha uma alternancia entre duas consoantes distintas no lugar de uma
> aferese, entao por que nao dar um passo a mais na analise que enriquece a
> morfologia, e dizer que no lugar da aferese ha alguma manipulac,ao
> sub-segmental, ou algo parecido? E o que e necessario dizer mesmo em
> Mebengokre, no caso de uma-pyma, une-pyne, etc., pois a labialidade da
> consoante permanece mesmo apos a aferese.
>
> Voltando aos "relacionais" no sentido mais amplo, uma afirmac,ao do tipo
> "o morfema X indica contiguidade do complemento e o nucleo" pra mim so tem
> tres traduc,oes possiveis: (1) X nao e um morfema, senao um fenomeno
> fonologico que ocorre em determinada fronteira, e nao em outras (tipo
> Acho que e uma hipotese sumamente interessante, mas nao confiaria a priori
> nisto como diagnostico para estabelecer parentesco, ja que relac,oes entre
> flexao de pessoa e afixos de mudanc,a de valencia existem em linguas nao
> aparentadas (o antipassivo em certas linguas Maias talvez seja um exemplo
> disto). O que e curioso e a morfologia nao-concatenativa como meio de
> expressar estas duas relac,oes, se e que a ha nos casos que sao
> claramente (2).
>
> Bem, nao conhec,o muito da literatura sobre relacionais, portanto posso
> estar passando por alto algum fato que realmente os torna unicos e
> distintos das possibilidades que considerei acima. Se assim for, eu
> ficaria muito contente de conhecer os dados relevantes.
>
> Eduardo, sinta-se a vontade para incluir qualquer artigo meu na biblioteca
> virtual da lista, ou de incluir o vinculo a minha pagina:
> http://mit.edu/kaitire/www/Docs/
>
> Saudac,oes a todos,
> Andres
>
> Andres Pablo Salanova
> http://mit.edu/kaitire/www
>
>
>
>
>
>
>
>
>
>
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