[etnolinguistica] filosofia e o campo
Denny Moore
moore at AMAZON.COM.BR
Sun Jul 13 16:41:31 UTC 2003
Caros colegas,
Tendo lido as posições de Storto e Sandalo e de Facó Soares e
dAngelis, bem como os comentários por dAngelis e Alfaro, estou tentando
entender os pontos de vista apresentados e relacionar os mesmos à situação
que encontro no campo na Amazônia. Primeiro, vou tentar apresentar o meu
entendimento da posição dos colegas Wilmar e Consuelo, embora eu não tenha
certeza de que a entenda e não quero representá-la mal.
Parece-me que uma preocupação deles é argumentar contra uma
posição prototípica caracterizada por duas crenças: (1) que uma língua é
algo livre de fatores políticos e sociais, e (2) que, para estabelecer uma
ortografia e materiais didáticos, é suficiente tratar somente os sons da
língua, seguindo certos passos técnicos, que são parecidos logicamente (em
alguma maneira que não está clara para mim) à fonologia da década 1950, sem
qualquer idéia da importância da autodeterminação da comunidade, de fatores
de identidade, influência de opressores, etc. O exemplo clássico destes
erros seria o SIL, uma vez que foram estes missionários que introduziram
ortografias baseadas em análise lingüística, utilizaram fonemas autônomos e
empregaram a sua capacidade técnica para controlar grupos indígenas, para
os seus próprios fins. A visão dos dois colegas seria superior, visto que
eles garantem aos grupos nativos a sua autonomia e iniciativa, apóiam a
livre escolha para o seu próprio benefício e entendem que considerações
políticas podem ter um papel nestas escolhas.
Porém, a primeira crença contra a qual estão argumentando, que
linguagem existe sem influência política, parece ser um estereótipo que
nunca existia como posição explícita de alguém. Na história da
lingüística, será que alguém de fato afirmou que linguagem não é parte de
cultura ou não é sujeito a condições culturais e sociais? Mesmo no texto
introdutório de Gleason, de 45 anos atrás, ele explica que os julgamentos
de semelhanças dialetais são influenciados por fatores políticos e
sociais. Qualquer aluno de graduação aprende exemplos deste tipo. Então
esta crença parece ser um homem de palha, uma posição mítica atribuída a
outros mas nunca defendida por ninguém. Certamente seria surpreendente se
este erro foi característico de Storto e Sandalo, que foram formadas no
departamento de lingüística do MIT, que é conhecido pela sua política
radical e sua antipatia à fonologia taxonômica e que não tem a mínima
afinidade ideológica com o SIL. Há lingüistas brasileiros que têm
envolvimentos históricos com SIL, mas não é o caso de Storto e Sandalo.
Lendo o texto de Storto e Sandalo, é claro que elas não sugerem
que fatores técnicos sozinhos geram uma ortografia. Ao contrário, elas
afirmam que análise lingüística, feita junto à comunidade, identifica
opções e resultados prováveis, que seriam explicados e discutidos com o
grupo, que então toma as suas decisões, que incluiriam os seus anseios e
fatores políticos. Então, insistir em análise lingüística competente não
implica em reducionismo ou em interferência com a autonomia indígena. De
fato, o caso é o contrário, como Storto e Sandalo observam: sem uma análise
adequada não existe escolha informada de opções e auto-determinação
verdadeira.
Logicamente, a inclusão por Storto e Sandalo de dados empíricos,
aqueles obtidos por observação e experiência, de nenhuma maneira implica em
reducionismo. Ao contrário, se uma pessoa inclui tais dados (por exemplo,
amostras de escrita) e uma segunda pessoa os exclui, a posição da segunda é
reduzida em relação à da primeira. Este sentido de empírico, que é o de
Storto e Sandalo, evidentemente não tem nada a ver com questões de inatismo
ou anti-mentalismo em lingüística.
Paralelamente, ter bons resultados como um objetivo não implica em
reducionismo. Wilmar observa, corretamente, que ter bons resultados como
objetivo não escapa de ser uma posição filosófica. Todavia, as razões
filosóficas para o foco em resultados são diferentes. Primeiro, este foco
separa o fim dos meios. Acho que foi George Santana que caracterizou um
fanático como alguém para quem os meios tornaram-se o fim, e isto é sempre
um perigo. Segundo, a questão de resultados é parecida com o princípio da
possibilidade de falsificação na ciência. Resultados ruins, como dados
falsificadores, implicam que as pressuposições e hipóteses devem ser
reexaminadas. Sem isto, idéias e atividades práticas são simples
exercícios em doutrina, ou secular (no caso de ideólogos) ou religiosa (no
caso missionários). Terceiro, uma pessoa é responsável pelos resultados
previsíveis das suas ações; sem considerar resultados não há responsabilidade.
Bem, quando eu olho para os programas de educação bilíngüe entre
os grupos indígenas de Rondônia, vejo as conseqüências destas considerações
filosóficas aparecendo de forma concreta. Forneço agora uma caracterização
breve da minha experiência, para ninguém pensar que sou turista. Eu venho
desenvolvendo pesquisas lingüísticas e atividades de benefício prático em
Rondônia (e às vezes em outras regiões) desde 1975. Atividades práticas
incluem um projeto de alfabetização em línguas indígenas desenvolvido ao
longo de quatro anos, em várias regiões, com trabalho quase exclusivamente
nas aldeias. O projeto foi bem sucedido em termos da capacitação alcançada
e da satisfação das comunidades envolvidas. Passei três dos últimos meses
em Rondônia, em pesquisa e em projetos práticos, especialmente como
Consultor para Assuntos Técnicos da Associação Indígena
Panderej. Conversei com muitas associações indígenas e também obtive
amostras de escrita de professores indígenas de seis etnias, na maioria dos
casos em cooperação com o presidente da Organização de Professores
Indígenas de Rondônia. Seis lingüistas do nosso grupo de pesquisa
registrado no CNPq realizam estudos em Rondônia. Todos são pecadores
convictos sem qualquer compromisso com entidades missionárias.
Posso oferecer ao menos uma breve visão preliminar da situação de
alfabetização em línguas indígenas na região onde trabalho. A situação é
mista. Nos poucos casos onde a ortografia e materiais de alfabetização
foram elaborados junto à comunidade, por lingüistas profissionais com longo
estudo da língua, onde o progresso de alunos foi acompanhado por alguém que
dominava a ortografia e a sua relação com a língua, os resultados são
excelentes. Por exemplo, quatro professores Djeoromitxi produziram
transcrições idênticas de uma lista de 20 palavras. Eles lêem e escrevem
com facilidade e estão confiantes e satisfeitos com o seus trabalho. Estes
três fatores, consistência, facilidade de ler e escrever e satisfação, têm
uma correlação positiva, do que eu pude observar nos casos que
conheço. Nos casos onde a elaboração de ortografia e materiais foi feita
por missionários ou lingüistas atuando temporariamente em visitas curtas,
os resultados são bem inferiores, mesmo após muitos anos, e é duvidoso que
vão melhorar sem mudanças. Nestes casos, há freqüentes reclamações,
especialmente quando os professores percebem erros por parte de quem
elaborou a ortografia ou materiais. As reclamações são do mesmo tipo
relatado por Storto e Sandalo. Em uma tribo, amostras de escrita de nove
atendentes de saúde mostraram 8 grafias diferentes de uma palavra de duas
sílabas, e trechos do manual de saúde foram impossíveis de ler. Isto
depois de 20 anos de alfabetização. A educadora local, uma pessoa de boa
vontade, ficou horrorizada com os resultados: apesar de trabalhar com o
grupo durante oito anos, ela nem desconfiava do tamanho do problema. Sem
conhecimento lingüístico, os educadores não podem explicar nada específica
sobre a escrita da língua aos alunos indígenas, nem entender ou avaliar o
que está acontecendo à sua frente. Alguns se limitam a atividades
simplistas, para dar aparência de alfabetização. Ensinam aos alunos vários
símbolos e pedem que eles elaborem textos, tarefa que eles fazem como
podem, com muitas dúvidas, mas fazendo o que o educador quer. Os
resultados nestes casos parecem ser geralmente ruins. Às vezes, o papel do
assessor de lingüística visitante é principalmente manter e dar legitimação
a este sistema, sem fornecer o conhecimento científico necessário. Nestes
casos, pode ser conveniente para os indivíduos que apóiam este sistema
afastar lingüistas profissionais com mais conhecimento, para manter controle.
Neste ponto, relato um exemplo deste tipo que ocorreu dois anos
atrás, em uma tribo em Rondônia, que não será identificada, visto que a
questão é uma de princípios e padrões de comportamento, não dos indivíduos
envolvidos. Todavia o caso é documentado e uma entrevista gravada com um
professor indígena pode ser transcrita e disponibilizada na rede
Etnolingüística, se houver dúvidas sérias por parte de alguém. É essencial
entrar em casos específicos, para evitar estereótipos e ver o que realmente
está acontecendo nas aldeias atualmente.
Nesta tribo, uma assessora de lingüística preparou materiais de
alfabetização preliminares, junto com alguns professores indígenas, sem
análise aprofundada da língua, ignorando completamente uma descrição da
fonologia preexistente, disponível como dissertação de mestrado e em forma
publicada. Havia dúvida entre os professores, especialmente por parte de
quem tinha conhecimento da fonologia da língua através de participação em
pesquisa. Uma vez que o pesquisador especialista na língua estava presente
na aldeia, houve uma discussão sobre a ortografia dos materiais, que foi
grossamente inadequada. A transcrição omitiu quatro consoantes, três
vogais, o tom e muitas das fronteiras entre palavras. Para sentir as
conseqüências em termos da perda drástica de inteligibilidade, considere o
seguinte trecho em português no qual um número igual de vogais e consoantes
foi omitido, o acento não indicado e fronteiras entre palavras confundidas:
(1) Upuetá é umfinjidu.
Finjetãocumpletamente
Quixegafinji quedú
Adú quedevé rasente
Você gostaria de ter tal transcrição usada para a língua portuguesa? Você
gostaria de ter materiais desta natureza usados para alfabetizar os seus
filhos? Ou será que a sua preferência seria para o padrão?
(2) O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
O lingüista especialista sugeriu uma comparação semelhante e uma
escolha livre e informada por parte da comunidade indígena. Ele colocou a
transcrição de um trecho do material preliminar, na transcrição da
assessora, em uma metade do quadro negro e, na outra metade, o mesmo trecho
na transcrição que ele e os índios envolvidos na sua pesquisa acharam
apropriada. Os índios presentes indicaram uma forte preferência para a
transcrição do especialista, aquele com base na fonologia da língua. Uma
educadora que estava presente reclamou para mim que o especialista se
comportou de uma maneira anti-ética: Nós ficamos com cara de bobas e ficou
até difícil trabalhar lá. (Parece que elas foram meio hostilizadas pelos
índios, chateados com a pressão de aceitar trabalho medíocre.) Notar que
ela, na reclamação, não indicou nenhum compromisso em respeitar a escolha
informada da comunidade, nem na viabilização da alfabetização, mas sim, na
manutenção de controle. As educadoras pressionaram os índios a não
trabalhar com o especialista, sem sucesso, e espalharam um boato afirmando
que este tinha afiliações missionárias. Subseqüentemente, as educadoras,
seguindo a sugestão de uma lingüista, provavelmente a assessora, enviaram
um parecer de seis páginas para várias entidades, atacando a atuação do
pesquisador, afirmando, exatamente o contrário da sua verdadeira prática,
que o seu posicionamento foi um no que a premissa fundamental do trabalho
com a língua indígena...é a de que os seus usuários (no caso dos
professores) é que devem ser os donos do processo de transformá-la em
língua escrita.
O pesquisador especialista respondeu detalhadamente, rebatendo as
críticas e anexando um fax dos índios, solicitando a publicação de
materiais educacionais preparados com o pesquisador. O fax foi resultado
de uma reunião da comunidade (sem presença do pesquisador), elaborado e
transmitido por dois professores indígenas encarregados desta tarefa. O
texto, obviamente espontâneo, é reproduzido abaixo, para os colegas sentir
os anseios da comunidade.
Assunto
No dia 27/12/001 Reunimos a comunidade p/ tratar o Assunto sobre as
cartilhas que elaboramos mas Linguistico [pesquisador especialista] p/ ser
publicadas p/ as escolas [tribo].
A comunidade está satisfeita com a cartilha que vai ser publicada
A comunidade fala que quer que a gente continua assim de jeito que
a gente está trabalhando e construindo o futuro p/ as crianças.
A comunidade nos explicou p/ pedir p/ vocês falar com pessoal de
Brasília que nos estamos sendo ameassado pela [agência educacional] que
também se as pessoas que querem trabalharem trabalhar ajudando mas não
atrapalhar a gente.
A comunidade pede que é p/ mandar as cartilhas sem problema porque
é isso que a gente precisa p/ ensinar os alunos na escola.
Era só isso mesmo que nos tinha p/ falar. Assinamos abaixo:
[nomes dos dois professores]
Os materiais, que são a propriedade intelectual da comunidade,
foram publicados e enviados para a tribo, onde encontraram resistência por
parte dos educadores, que insistem em manter controle, apesar da vontade
indígena e da evidente superioridade dos materiais em relação aos
produzidos pela assessora. Para precaver-se de quaisquer tentativas de
interferir com a escolha de ortografia, a associação indígena da tribo
votou formalmente por aceitar a ortografia do pesquisador especialista,
fato que deve constar nas atas da associação.
A repressão não se limitou a este caso. Houve uma proposta pelas
educadoras de fornecer uma lista de lingüistas aprovados que podiam
trabalhar com línguas indígenas do Estado, evidentemente para afastar os
pesquisadores honestos e competentes que possam ameaçar o seu
controle. Esta iniciativa falhou, mas há relatos em várias outras regiões
de tentativas de afastar lingüistas descritivos de comunidades
indígenas. Estas tentativas representam uma ameaça que deve preocupar os
membros da ABRALIN.
Agora eu passo a fazer certas observações sobre este caso (que é
longe de ser uma exceção) e relacioná-lo à discussão filosófica
inicial. Primeiro, ao contrário do estereótipo no qual o pesquisador
científico politicamente ingênuo está tentando obrigar os indígenas a
aceitar considerações técnicas no processo educacional enquanto os índios
estão sendo defendidos por outros brancos que têm a posição política
correta (que os índios são os donos do processo, etc), o que realmente
ocorreu é o contrário: índios com algum conhecimento científico da sua
língua, obtido na pesquisa da mesma, apoiaram opções tecnicamente bem
fundamentadas, contra a pressão das pessoas que constantemente repetiam um
discurso de autodeterminação mas que faziam o possível para manter
controle, para o seu próprio benefício, e não da comunidade. Os casos
mencionados por Storto e Sandalo representam o mesmo espírito: índios que
obtiveram conhecimento científico da sua língua, através da participação no
programa em lingüística do Terceiro Grau Indígena, que reclamam a baixa
qualidade do trabalho lingüístico que forneceu a base da escrita da sua
língua.
O posicionamento de Storto e Sandalo serviria para combater o tipo
de má atuação descrita no caso detalhado de Rondônia, apresentado acima,
que é freqüente nesta e em outras regiões. Elas são claramente contra a
falta de escolha informada que foi evidente neste caso. Ao invés de
escolha informada, as educadoras e a assessora usaram as suas cargas para
induzir índios a aceitar trabalho deficiente, sem informá-los dos
resultados prováveis. Storto e Sandalo estão corretas sobre a importância
da qualidade da análise lingüísticabasta ver a redução em inteligibilidade
produzida pela representação fonológica inadequada neste caso para entender
que pode seriamente atrapalhar alfabetização. Notar que não havia
necessidade de criar materiais inadequados; uma fonologia preexistente
estava disponível, como também o pesquisador que a elaborou.
Se uma medicina experimental que, estatisticamente, pode provocar
efeitos colaterais severos, mata 5% dos que tomam e não comprovadamente
cura a doença fosse oferecida a uma comunidade indígena, a comunidade não
deveria ser informada destes fatos? Claramente sim. Se materiais
educacionais grossamente inadequados que, estatisticamente, provoca agonias
futuras nos professores, obriga os alunos a desaprender o que aprenderam, e
diminui as chances de alfabetização, fossem oferecidos a uma comunidade
indígena, a comunidade não deveria ser informada destes fatos? Claramente sim.
Não quero ser injusto com o colega Wilmar, que tem se colocado
claramente a favor de consentimento livre e esclarecido e contra pressões
coercivas contra grupos indígenas, mas me parece justo afirmar que uma
versão vulgarizada do seu posicionamento, ironicamente, está sendo
utilizada como um discurso justificador para atividades em detrimento
destes princípios, como no exemplo detalhado de Rondônia acima e em casos
parecidos em outras regiões. Este discurso consiste em:
--Proclamações constantes de ter uma visão superior de autonomia indígena;
(Mesmo as pessoas que estão promovendo o garimpo entre os Cinta Larga falam
sempre que estão apoiando a livre escolha dos índios.)
--Desprezo de análise lingüística como mera técnica;
--Desprezo de evidência empírica;
--Desprezo de resultados como critério, ou porque seria redutivo, ou porque
o processo em questão está sendo construído durante tempo indefinido;
--Produção de vários argumentos confusos para defender ortografias e
materiais educacionais defectivos (Este é consistente com a prática do
SIL, que acostumava citar os exemplos de francês e inglês para justificar
os seus erros.)
--Insinuações de que lingüistas descritivos são contra a autonomia indígena
ou que eles têm afinidades missionárias.
Quaisquer que sejam os resultados da seleção do representante da
ABRALIN junto ao MEC, me parece que Storto e Sandalo têm contribuído muito
por ter escutado as reclamações justas e corretas dos índios, por ter
destacado o fato de que não está tudo bem na educação indígena e por ter
indicado as considerações necessárias para melhorar a situação.
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