Sotaques brasileiros
Eduardo Rivail Ribeiro
kariri at GMAIL.COM
Fri Nov 21 20:45:14 UTC 2008
Prezado Beni,
Obrigado por levantar este tema, de fato fascinante. Também andei matutando
a respeito e cheguei mais ou menos à conclusão de que a raiz da diversidade
dialetal do português brasileiro se deve mais à diversidade original do
português trazido para cá (que não era homogêneo e muito menos padronizado)
e às peculiaridades do povoamento das diversas regiões do país do que a
fatores de substrato (ou seja, à influência de línguas que eram faladas
antes da chegada do português). Talvez o desenvolvimento de línguas gerais
baseadas no Tupí da Costa, e que acabaram sendo adotadas por todos os grupos
étnicos que compunham a sociedade colonial na maior parte da América
portuguesa, tenha prevenido que línguas indígenas regionais tivessem um
impacto maior no português que, mais tarde, se tornaria a língua
predominante.
Não que eu tenha feito uma pesquisa aprofundada do assunto, levando em
consideração todos os dialetos do português brasileiro. Meu interesse diz
respeito principalmente ao chamado "dialeto caipira" (meu dialeto nativo),
que é falado justamente em regiões colonizadas inicialmente pelos
bandeirantes paulistas. Como estes falavam, então, a Língua Geral Paulista,
uma pergunta natural seria se o dialeto caipira teria recebido uma
influência Tupí maior (quando comparado com, digamos, o português do Rio).
Por exemplo, seria o chamado "r caipira" (ou seja, a pronúncia retroflexa do
"r" em posição de coda silábica), que é a característica mais marcante (e
discriminada) do português caipira, um resquício de alguma língua indígena?
Como a Língua Geral Paulista era difundida nestas regiões, seria o suspeito
ideal. Mas é bastante improvável, não só porque o Tupí da Costa (e
provavelmente suas descendentes, as línguas gerais) não tinha tal pronúncia,
mas porque uma explicação interna é ainda mais plausível: o lingüista Brian
Head, que foi professor da Unicamp e está agora, se não me engano, em
Portugal, tem um artigo bastante interessante sobre o desenvolvimento do "r
caipira" a partir de fatores internos do próprio português. [Vou ver se
encontro o artigo por aqui, para aqueles que se interessarem.]
Como tem sido demonstrado por vários autores (por exemplo, Naro & Scherre),
muitas das características que se imaginam serem tipicamente brasileiras e
até indício de "crioulização" em alguns dialetos do português brasileiro já
ocorriam em Portugal, antes da "descoberta". Muitos são resultados de
tendências características no desenvolvimento das línguas românicas, nos
dois lados do Atlântico. No caso do dialeto caipira, os mesmos fatores que
favoreceram no início o uso da Língua Geral Paulista (ou seja, isolamento,
fluxo menor de imigrantes portugueses) favoreceram a preservação de
arcaísmos e o desenvolvimento de características peculiares, longe das
tendências padronizantes que porventura ocorressem na costa e na metrópole.
Em um artigo que escrevi há algum tempo sobre o assunto, menciono uma coisa
que sempre achei interessante, desde menino (já que, como descendente de
mineiros e baianos, cresci em "lar bilingüe"): o português falado em regiões
que sofreram miscigenação mais intensa tende a ser mais próximo ao "padrão".
É que regiões de fácil acesso e economicamente prósperas (Belém e Salvador,
por exemplo), que mais necessitaram mão-de-obra indígena ou africana, foram
também as que mais atraíram um fluxo contínuo de imigrantes portugueses.
É claro que, quando falo em "influências" acima, tenho em mente influências
estruturais, na fonologia, na morfologia e na sintaxe (ou, até, na
semântica). Neste aspecto, especificamente, não há nada que se possa em
definitivo atribuir a influências indígenas. O léxico, naturalmente, é
outra história. Além do número enorme de termos de origem Tupí que
sobrevivem no português falado no país inteiro, há aqueles que tendem a ser
mais comuns onde a influência cultural indígena teve um impacto maior -- a
cultura caipira sendo uma delas. Mas isto, parece-me, não é o que vem à
mente quando se fala em "sotaques diferentes".
No caso do léxico, sim, acham-se exemplos de influências indígenas locais no
português de certos lugares onde índios e não índios conviveram (ou ainda
convivem). Por exemplo, em São Félix do Araguaia, não é incomum que um não
índio use palavras Karajá como kòhã 'cachaça' ou kutura 'peixe'. E me lembro
de um bate-papo com Lucy Seki, maior especialista em Krenák, em que ela
mencionava o uso de palavras como curuca 'criança' no português de áreas
tradicionalmente Krenák (cf. Krenák kruk) -- se não me falha a memória (é
isso mesmo, Lucy?).
Bem, espero que esta conversa não pare por aqui. Alguém saberia de exemplos
de influências exercidas por línguas regionais em certos dialetos do
português brasileiro?
Abraços,
Eduardo
----- Original Message -----
From: Beni Borja - Psicotronica
To: etnolinguistica at yahoogrupos.com.br
Sent: Thursday, November 20, 2008 8:52 AM
Subject: [etnolinguistica] Sotaques brasileiros
Prezados Professores, Doutores e Sabidos em geral,
Com a cara-de pau que a internet me faculta , me atrevo a invadir esse
espaço de doutas discussões para propor uma questão que me aflige.
Sou um mero músico/ ompositor popular , leigo por completo nas artes e
manhas da etno-linguística, mas um profundo curioso sobre a intercessão
entre as linguas e a história.
Num colóquio etílico recente com um amigo, discutíamos sobre os diversos
sotaques do Brasil. Inspirado por Baco fiz a temerária afirmação que os
nossos diversos sotaques regionais, tem sua gênese nas línguas indígenas
faladas naquelas regiões antes do aparecimento do português.
É com certeza uma afirmação que tem a leviandade típica dos ignorantes, que
despreza a enorme complexidade da presença indígena antes da invasão
portuguesa e as dificuldades de estabelecer um nexo causal entre o português
falado hoje e as línguas faladas pelos índios.
Mas não obstante essas dificuldades , teria a minha tese algum farrapo de
evidência para sustentá-la??
Agradecendo desde já a "ajuda dos universitários" que por ventura receba,
abraços
Beni Borja
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