Sotaques brasileiros
Eduardo Rivail Ribeiro
kariri at GMAIL.COM
Mon Nov 24 19:48:53 UTC 2008
Caro Beni,
Começando de trás pra frente, pelo fim da sua mensagem: desconheço, infelizmente, palavras de origem Macro-Jê que tenham se tornado comuns no léxico do português brasileiro. Há algum tempo, encontrei na internet a sugestão de que o samba (incluindo sua denominação) seria de origem Kariri, mas não encontro na literatura nada que corrobore esta hipótese (de acordo com a qual, se me lembro bem, "samba" se referiria a uma festa indígena em que se comeria cágado (em Kipeá-Kiriri, sambá); nas fontes coloniais (que são, infelizmente, o que se tem de substancial sobre essa língua e a cultura original dos povos Kariri), não há nada que justifique o salto lógico "cágado" > "festa em que se dançava e se comia cágado". A menos que haja fontes que eu desconheça. [Lingüisticamente, também ficaria sem explicação o deslocamento do acento para a penúltima sílaba, já que as palavras Kariri eram acentuadas na última sílaba.] Mas talvez algum outro colega na lista saiba de termos de origem Macro-Jê que tenham ingressado no léxico geral do português; fico curioso para saber também.
Sua tese parecia bacana, mesmo, e está longe de ser um palpite infeliz. A comprovação de influências de substratos não é tarefa fácil, mesmo no caso de línguas muito mais bem estudadas que as nossas. Muitas sugestões foram feitas, no caso de línguas européias, e estas continuam sem prova cabal: por exemplo, a de existência de influências de substrato basco no espanhol (que explicaria, supostamente, a transformação f > zero), ou de substrato celta no francês (ambas devidamente combatidas por alguns dos grandes nomes da nossa ciência). Como um mesmo fenômeno lingüístico pode ocorrer por diversos caminhos, fica difícil determinar com certeza se tal ou qual fato lingüístico seria conseqüência, necessariamente, de contato lingüístico. Não é, necessariamente, que não tenha havido influências mais profundas no nosso português. É que, se houve, foram de tal natureza que nossos métodos não podem captar. A própria natureza do contato étnico no Brasil -- em que diferentes elementos se amalgamaram para formar uma cultura que é, em linhas gerais, compartilhada por todos -- complica qualquer tentativa de se determinar, com precisão, de onde veio cada elemento.
A arte, por outro lado, tem o poder de captar coisas que nossa vã ciência não consegue. Então, gosto de seu verso -- "línguas mortas viram sotaques". Principalmente se, extrapolando um "mucadim", estendemos "sotaque" para outras formas de linguagens e manifestações culturais. A culinária, como aponta o Rick, sendo uma delas. E eu penso em gestos, toques (o cafuné, por exemplo: por mais que a palavra seja africana, o hábito é tão difundido entre os indígenas que é difícil delimitar sua origem a este ou aquele povo), e sistemas de crenças. Porque, quando se cultiva mandioca, não é só a planta, a nomenclatura e o conhecimento do plantio que está em jogo; há um certo sistema de crenças herdado dos nossos ancestrais indígenas, geração após geração (fico imaginando: de que outra maneira saberíamos que não é bom gemer ao arrancar a raiz?). Não que se queira minimizar a destruição causada pela colonização, os massacres e extermínios em massa. Mas, se serve de consolo (e não serve), é bom saber que muito daqueles povos supostamente extintos ainda sobrevive em nós (inclusive seus genes).
E agora de volta aos nossos avós nordestinos. A negação da origem indígena (ou negra) é, infelizmente, muito comum, especialmente entre aqueles que encaram mais de perto a discriminação. Tive uma amiga boliviana na graduação que se ofendeu quando perguntei sobre sua ancestralidade indígena, mesmo que o seu rosto não negasse. Mas, adicionando uma camada de negação: em Brasília, encontrei muitos com um sotaque nitidamente pernambucano, ou baiano, que pareciam ofendidos pela pergunta "você é nordestino?". É que, para o discriminado, o verso de Caetano não se aplica: Narciso acha feio o que é espelho. Se Brasília não tivesse sido construída no triângulo da miséria, se a mão de obra barata não fosse justamente o caipira e o sertanejo, nossos sotaques lá talvez seriam mais valorizados. E aí me lembro de um samba do Billy Blanco, ignorante de sua própria gente, na canção "Não vou pra Brasília": "eu não sou índio, nem nada; não tenho a orelha furada; nem tenho argola pendurada no nariz..."
Você tem toda a razão: para superarmos nosso complexo de vira-lata, é essencial reconhecermos nossa dívida ao índio. Especialmente ao índio de carne e osso, depauperado, que sobreviveu, e que tem ainda muito a nos ensinar.
Abraços,
Eduardo
----- Original Message -----
From: Beni Borja - Psicotronica
To: etnolinguistica at yahoogrupos.com.br
Sent: Saturday, November 22, 2008 2:36 PM
Subject: Re: [etnolinguistica] Sotaques brasileiros
Prezado Eduardo,
Muitíssimo agradecido pela sua atenção. Foi ótimo saber que o tema também te interessa. Suas considerações foram altamente esclarecedoras ,embora algo decepcionantes.
Confesso que me senti como uma criança que tem sua bola furada. Minha tese parecia tão bacana! Mas isso é que dá ser "intelectual de miolo-mole" como alguém já chamou o Caetano , numa definição que cabe bem para todos os artistas.
De fato, não considerei que entre o português e as línguas indígenas houve a língua geral, coisa que eu sabia, entre outras fontes pelas minhas leituras do Capistrano. Aliás , acho que foi no Capistrano que li que os bandeirantes chamavam de "gente da língua travada" as populações indígenas do interior , no que me pareceu um referência as línguas do ramo macro-jê ( é isso mesmo ? ou estou viajando na maionese mais uma vez?),
O "travamento" a que eles se referiam , no meu delírio "miolo-molístico" me remeteu ao nosso querido "r" retroflexo, mas suas considerações revelam a inconsistência da minha conjectura.
Na verdade a minha primeira idéia sobre esse tema veio do sotaque nordestino. Tenho avós potiguares e cearenses , como vc. cresci num ambiente "bi-lingue". Se a cultura "caipira" ainda tem referências presentes da cultura indígena ( meu disco favorito do momento é "O canto da Terra" da dupla Cacique e Pajé, conhece?), no Nordeste a presença da cultura indígena é totalmente rejeitada.
Meu avô Francisco, potiguar da Chapada do Apodi, de uma família estabelecida há séculos naquela região, era fisionômicamente um índio. Entretanto , rejeitava e se sentia mesmo ligeiramente ofendido, se alguém fizesse referência a antepassados indígenas. Pensei que fosse uma indiosincrasia pessoal, mas com passar dos anos percebi que era um traço marcante da cultura "nordestina" a rejeição total da cultura indígena. Algo que implicaria que em algum momento da história teria descido em algum lugar do sertão nordestino uma espaçonave com extra-terrestres de cabeça chata.
A negação sistemática da contribuição indígena a nossa cultura é certamente algo com a qual vcs. estudiosos estão acostumados ,até porque deve ser um elemento essencial da dificuldade das pesquisas , mas para mim foi um choque. Foi tentando ver aonde subsiste "o índio" no brasileiro de hoje , que comecei a me interessar por esse tema. Quando os recentes estudos sobre o DNA do brasileiro, comprovam científicamente o que nós já vemos na cara das pessoas , me parece que esse é um tema à tratar em arte.
A gente bebe mate e guaraná , fala mil palavras em tupi-guarani , faz festas ritualizadas em qualquer evento e acha que índios são só quem vive em aldeia... Os indios somos nós também, não é?
Ou seja, eu estava tentando do meu modo meio "psicodélico" estabelecer uma certa continuidade cultural entre os brasileiros de hoje e os povos indígenas pré-descobrimento, um exercício que me parece fundamental para o nosso psique-nacional. Me parece que para vencermos definitivamente o nosso complexo de vira-lata , para que a nossa auto-estima não seja uma reflexo contra-fóbico do nosso complexo de inferioridade, para que nos sintamos confortáveis nessa pele "vermelha" de brasileiros , é preciso se re-encontrar com o índio, mesmo que seja numa invenção de passado.
Digo isso tudo porque , apesar da minha "bola furada" continuarei usando o verso -línguas mortas viram sotaques" - em uma canção (ainda inédita) que eu fiz chamada "Viagem de Volta" ( título surrupiado duma coletânea organizada pelo antropólogo João Pacheco de Oliveira sobre a reelaboração cultural no Nordeste indígena).
Mas voltando ao tema , e a exploração da sua boa vontade em ensinar um ignorante. Existem no nosso léxico centenas de palavras a que são identificadas como originárias do tupi-guarani , imagino que sejam as que se incorporaram a lingua-geral. Me pergunto , e o jê? , ficou só nos toponímicos? Ou existem palavras que usamos ainda hoje de origem jê?
Agradacendo mais uma vez a sua generosidade,
um abraço
Beni
----- Original Message -----
From: Eduardo Rivail Ribeiro
To: etnolinguistica at yahoogrupos.com.br
Sent: Friday, November 21, 2008 6:45 PM
Subject: Re: [etnolinguistica] Sotaques brasileiros
Prezado Beni,
Obrigado por levantar este tema, de fato fascinante. Também andei matutando
a respeito e cheguei mais ou menos à conclusão de que a raiz da diversidade
dialetal do português brasileiro se deve mais à diversidade original do
português trazido para cá (que não era homogêneo e muito menos padronizado)
e às peculiaridades do povoamento das diversas regiões do país do que a
fatores de substrato (ou seja, à influência de línguas que eram faladas
antes da chegada do português). Talvez o desenvolvimento de línguas gerais
baseadas no Tupí da Costa, e que acabaram sendo adotadas por todos os grupos
étnicos que compunham a sociedade colonial na maior parte da América
portuguesa, tenha prevenido que línguas indígenas regionais tivessem um
impacto maior no português que, mais tarde, se tornaria a língua
predominante.
Não que eu tenha feito uma pesquisa aprofundada do assunto, levando em
consideração todos os dialetos do português brasileiro. Meu interesse diz
respeito principalmente ao chamado "dialeto caipira" (meu dialeto nativo),
que é falado justamente em regiões colonizadas inicialmente pelos
bandeirantes paulistas. Como estes falavam, então, a Língua Geral Paulista,
uma pergunta natural seria se o dialeto caipira teria recebido uma
influência Tupí maior (quando comparado com, digamos, o português do Rio).
Por exemplo, seria o chamado "r caipira" (ou seja, a pronúncia retroflexa do
"r" em posição de coda silábica), que é a característica mais marcante (e
discriminada) do português caipira, um resquício de alguma língua indígena?
Como a Língua Geral Paulista era difundida nestas regiões, seria o suspeito
ideal. Mas é bastante improvável, não só porque o Tupí da Costa (e
provavelmente suas descendentes, as línguas gerais) não tinha tal pronúncia,
mas porque uma explicação interna é ainda mais plausível: o lingüista Brian
Head, que foi professor da Unicamp e está agora, se não me engano, em
Portugal, tem um artigo bastante interessante sobre o desenvolvimento do "r
caipira" a partir de fatores internos do próprio português. [Vou ver se
encontro o artigo por aqui, para aqueles que se interessarem.]
Como tem sido demonstrado por vários autores (por exemplo, Naro & Scherre),
muitas das características que se imaginam serem tipicamente brasileiras e
até indício de "crioulização" em alguns dialetos do português brasileiro já
ocorriam em Portugal, antes da "descoberta". Muitos são resultados de
tendências características no desenvolvimento das línguas românicas, nos
dois lados do Atlântico. No caso do dialeto caipira, os mesmos fatores que
favoreceram no início o uso da Língua Geral Paulista (ou seja, isolamento,
fluxo menor de imigrantes portugueses) favoreceram a preservação de
arcaísmos e o desenvolvimento de características peculiares, longe das
tendências padronizantes que porventura ocorressem na costa e na metrópole.
Em um artigo que escrevi há algum tempo sobre o assunto, menciono uma coisa
que sempre achei interessante, desde menino (já que, como descendente de
mineiros e baianos, cresci em "lar bilingüe"): o português falado em regiões
que sofreram miscigenação mais intensa tende a ser mais próximo ao "padrão".
É que regiões de fácil acesso e economicamente prósperas (Belém e Salvador,
por exemplo), que mais necessitaram mão-de-obra indígena ou africana, foram
também as que mais atraíram um fluxo contínuo de imigrantes portugueses.
É claro que, quando falo em "influências" acima, tenho em mente influências
estruturais, na fonologia, na morfologia e na sintaxe (ou, até, na
semântica). Neste aspecto, especificamente, não há nada que se possa em
definitivo atribuir a influências indígenas. O léxico, naturalmente, é
outra história. Além do número enorme de termos de origem Tupí que
sobrevivem no português falado no país inteiro, há aqueles que tendem a ser
mais comuns onde a influência cultural indígena teve um impacto maior -- a
cultura caipira sendo uma delas. Mas isto, parece-me, não é o que vem à
mente quando se fala em "sotaques diferentes".
No caso do léxico, sim, acham-se exemplos de influências indígenas locais no
português de certos lugares onde índios e não índios conviveram (ou ainda
convivem). Por exemplo, em São Félix do Araguaia, não é incomum que um não
índio use palavras Karajá como kòhã 'cachaça' ou kutura 'peixe'. E me lembro
de um bate-papo com Lucy Seki, maior especialista em Krenák, em que ela
mencionava o uso de palavras como curuca 'criança' no português de áreas
tradicionalmente Krenák (cf. Krenák kruk) -- se não me falha a memória (é
isso mesmo, Lucy?).
Bem, espero que esta conversa não pare por aqui. Alguém saberia de exemplos
de influências exercidas por línguas regionais em certos dialetos do
português brasileiro?
Abraços,
Eduardo
----- Original Message -----
From: Beni Borja - Psicotronica
To: etnolinguistica at yahoogrupos.com.br
Sent: Thursday, November 20, 2008 8:52 AM
Subject: [etnolinguistica] Sotaques brasileiros
Prezados Professores, Doutores e Sabidos em geral,
Com a cara-de pau que a internet me faculta , me atrevo a invadir esse
espaço de doutas discussões para propor uma questão que me aflige.
Sou um mero músico/ ompositor popular , leigo por completo nas artes e
manhas da etno-linguística, mas um profundo curioso sobre a intercessão
entre as linguas e a história.
Num colóquio etílico recente com um amigo, discutíamos sobre os diversos
sotaques do Brasil. Inspirado por Baco fiz a temerária afirmação que os
nossos diversos sotaques regionais, tem sua gênese nas línguas indígenas
faladas naquelas regiões antes do aparecimento do português.
É com certeza uma afirmação que tem a leviandade típica dos ignorantes, que
despreza a enorme complexidade da presença indígena antes da invasão
portuguesa e as dificuldades de estabelecer um nexo causal entre o português
falado hoje e as línguas faladas pelos índios.
Mas não obstante essas dificuldades , teria a minha tese algum farrapo de
evidência para sustentá-la??
Agradecendo desde já a "ajuda dos universitários" que por ventura receba,
abraços
Beni Borja
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