Imprensa: "Tupis-guaranis j á estavam no Sudeste há 3.000 anos"

beatriz carretta beacarretta at YAHOO.COM.BR
Wed Feb 11 14:42:09 UTC 2009


olá, eduardo,

não há dúvida de que o jornalista da folha fez alguma confusão. em primeiro lugar, o máximo que os dados arqueológicos podem informar é que um determinado vestígio cerâmico pertence à chamada tradição tupiguarani, e isso não dá indicação alguma de quem foram ou que língua falavam os fabricantes da cerâmica. trata-se de um conceito arqueológico que não apresenta, em princípio, uma correlação direta com conceitos lingüísticos, como dialeto, língua ou família lingüística. 

por outro lado, a arqueóloga não identificou nem apresentou datação de vestígios cerâmicos, mas de restos de uma fogueira de provável origem antrópica. muito provavelmente a idéia de que a fogueira tenha sido usada para queimar cerâmica representa a síntese da compreensão do jornalista do que a arqueóloga lhe explicou, baseado provavelmente em um comentário en passant da arqueóloga, pois não há o registro - pelo menos na matéria jornalística - de restos de cerâmica, que certamente deveriam ser encontrados numa fogueira usada para esse fim. 

em realidade, não é a hipótese de que povos tupí-guaraní habitaram a região do atual estado do rio de janeiro que se vê reforçada pelos novos dados, mas a evidência de que a região já era habitada há cerca de 3 mil anos. seriam necessárias datações de cerâmicas pertencentes à tradição tupiguarani para indicar a ocupação da região pelos povos relacionados a essa tradição em outras regiões, provavelmente falantes de línguas pertencentes à família tupí-guaraní. 

entretanto, como existem indicações etno-históricas de que a costa do nordeste teria sido dominada pelos tupinambá, que teriam expulsado povos de outras etnias para o interior do país ao ocupar a região litorânea, também pode-se supor que as tais fogueiras pertenciam a povos de outras etnias que teriam, mais tarde, sido deslocados ou simplesmente dominados pelos tupinambá. enfim, o título da matéria jornalística deveria ser "comprovada ocupação do sudeste há 3 mil anos", menos impactante talvez, mas com maior rigor científico.

a raiz dessa confusão toda é provavelmente o próprio nome da tradição, tupiguarani, apesar da grafia sem hífen justamente para que não fosse confundido com a família lingüística tupí-guaraní. houve tentativas de minimizar o problema da homofonia, dividindo em duas subtradições - tupí e guaraní - de acordo com as diferenças entre elas. de fato, a divisão favorece a correlação com a lingüística, uma vez que geograficamente - fora da amazônia - é possível identificar a subtradição tupí com registros históricos de povos falantes de tupí antigo e tupinambá, e a subtradição guaraní com registros históricos de povos falantes de guaraní. resta, entretanto, o problema da cerâmica amazônica.

contudo, não se pode tentar estabelecer de forma ingênua uma correlação entre dados arqueológicos e lingüísticos, nem esquecer que a única ciência capaz de determinar datações absolutas é a arqueologia. assim, uma cerâmica policroma amazônica da tradição tupiguaraní ou da subtradição tupí de 3 ou 4 mil anos não estabelece, por um lado, uma relação direta com povos atuais falantes de línguas tupí-guaraní. por outro lado, sabe-se que a família tupí-guaraní foi a última a desmembrar-se no âmbito do tronco tupí, de forma que é lícito pensar que a subtradição tupí encontrada na região amazônica pode não ter correlação com falantes de línguas da família tupí-guaraní - tupinambá ou tupí antigo -, mas sim com falantes de outras línguas tupí, ou de proto-línguas de estágios intermediários de desenvolvimento do tronco tupí, ou ainda de proto-tupí.

outra confusão não menos importante é a designação de "povos tupí-guaraní", um conceito que evoluiu no imaginário nacional como referência a povos falantes da língua tupí-guaraní (!), que é a versão tupiniquim do bom selvagem - os tupinambá - em oposição aos selvagens tapuia que falavam línguas diversas e ininteligíveis entre si. o que o senso comum intitula tupí-guaraní guarda pouca relação com o que a lingüística chama de família lingüística tupí-guaraní e provavelmente nenhuma relação com o que a arqueologia chama de tradição tupiguarani. 

enfim, as confusões proliferam não apenas nas fronteiras entre as ciências, mas também no senso comum que reflete as representações coletivas que os brasileiros fazemos de nós mesmos. e as matérias jornalísticas, que tem o papel importantíssimo de vulgarizar conhecimentos, contribuem de maneira quase irresponsável para disseminar enganos e, o que é pior, enraizar (pre)conceitos.  

de qualquer forma, o artigo assinado por andré prous na revista ciência hoje merece atenção, pois trata-se de artigo sério escrito por arqueólogo consagrado e que permite entender o problema da utilização de nomenclatura semelhante em áreas diferentes com significados distintos, além de conhecer o estado atual da questão relativa à cerâmica tupiguarani.

um abraço,
beatriz




From: eduardo_rivail 
Sent: Wednesday, February 11, 2009 1:40 AM
To: etnolinguistica at yahoogrupos.com.br 
Subject: [etnolinguistica] Imprensa: "Tupis-guaranis já estavam no Sudeste há 3.000 anos"


Alguém mais leu esta matéria, publicada há dois meses
(http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u480384.shtml)?

O que querem dizer com "o povo tupi-guarani"? Será que a matéria
capturou bem o que queria dizer a autora da pesquisa? Em se tratando
de matéria de "ciência" na Folha, nunca se sabe.

Teria ocorrido ao repórter perguntar como se pôde determinar que os
responsáveis pela tal fogueira eram representantes do "povo
tupi-guarani" -- e não, digamos, de povos que os precederam?

Ou será que estão confundindo alhos (a chamada 'tradição Tupiguarani'
em estudos arqueológicos de cerâmica;
http://cienciahoje.uol.com.br/3283) com bugalhos (a família
lingüística Tupí-Guaraní ou um de seus subgrupos)?

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17/12/2008 - 08h20

Tupis-guaranis já estavam no Sudeste há 3.000 anos

EDUARDO GERAQUE
da Folha de S.Paulo

O povo tupi-guarani já vivia na região de Araruama (RJ) há 2.920 anos
(a margem de erro é de 70 anos) --aproximadamente 1.180 anos antes do
que as evidências científicas indicavam até hoje. A descoberta
publicada nos "Anais da Academia Brasileira de Ciências" embaralha as
teorias que tentam explicar a dispersão dessa cultura indígena, que
teria começado na Amazônia.

A "nova" datação, deduzida a partir dos carvões de uma fogueira
(provavelmente usada na queima de cerâmica), na verdade foi feita no
final dos anos 1990. Justamente pelo fato de ser antiga demais, porém,
a autora do estudo, Rita Schell-Ybert, do Museu Nacional, não
acreditou que a fogueira pudesse ser obra de humanos, e acabou
engavetando a análise.

O panorama só começou a mudar recentemente, quando surgiu um outro
dado. A datação de uma outra fogueira, desta vez de origem funerária,
no mesmo sítio arqueológico de Morro Grande, município de Araruama,
mostrou que ela havia sido feita 2.600 anos atrás.

Os tupis-guaranis, diz Schell-Ybert à Folha, enterram seus mortos em
urnas, mas ao lado eles fazem fogueiras --tanto para "espantar
espíritos ruins" quanto para "aquecer a alma" do morto e prepará-la
para entrar no Guajupiá (o Paraíso da mitologia tupi-guarani).

"Com essa nova datação resolvi voltar ao estudo do final dos anos
1990", diz a cientista, que contou com recursos do CNPq (Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e da Faperj
(Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro). A hipótese de que
aqueles carvões não tinham sido queimados por humanos acabou descartada.

Uma das pistas que levaram a essa conclusão, explica a antropóloga, é
a quantidade de cascas observadas nas amostras. "Quando a queima é de
origem antrópica [humana], existe muito mais casca do que lenha, como
foi visto", afirma.

Com as duas informações em mãos: a fogueira funerária de 2.600 anos e
a fogueira doméstica de 2.920 anos, as evidências antropológicas de
que os tupis-guaranis habitaram aquela região dos lagos fluminenses
ficou mais robusta. "Nesta área, provavelmente, houve um ciclo de
ocupação e desocupação", explica.

Mas se os tupis-guaranis chegaram ao atual Sudeste do país faz tempo,
como eles poderiam ter deixado a Amazônia quase na mesma época, como
mostram as evidências científicas disponíveis atualmente?

Migração antecipada

"Os resultados são bem surpreendentes. Eles complicam um pouco as
coisas, talvez até nos levando a rejeitar uma origem amazônica dos
tupis-guaranis", afirma Eduardo Neves, antropólogo do Museu de
Arqueologia e Etnologia da USP.

Neves trabalha em Porto Velho (RO) tentando descobrir se o centro a
partir do qual os tupis-guaranis se dispersaram era naquela região.
Segundo ele, as datas potencialmente candidatas para as ocupações da
Amazônia são as mesmas que as divulgadas agora para o norte do Rio de
Janeiro, "ou até mais recentes". Mas essas datações, diz o pesquisador
da USP, são baseadas em dados lingüisticos e não arqueológicos.

Para a pesquisadora do Museu Nacional, essa ocupação antiga dos
tupis-guaranis no Rio, se não tira a importância da Amazônia como
centro de origem desse grupo indígena, ajuda a mostrar, talvez, que a
saída do norte do país começou bem antes do que se imaginava. 



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