Epifenomenalidade, etc.

Eduardo R. Ribeiro kariri at GMAIL.COM
Wed Mar 17 01:15:37 UTC 2010


Olá, Andrés,

Beleza. É explicando que a gente se entende. A "idéia" provém de vários 
lugares (para começo de conversa, para mim, foi com Benveniste, que era 
leitura obrigatória para ingresso no mestrado na UFG, na minha mocidade). Se 
menciono o Spike nas minhas notinhas é porque foram escritas justamente para 
propor a tal mesa redonda, que deveria incluir (como, de fato, incluiu) 
estudantes de línguas Tupi, Karib e Jê. Eu mencionava o Spike de segunda 
mão, porque o pouco que sabia sobre o assunto em Karib era através do Sérgio 
Meira.

Na época, o que me motivou foram os dados da Chris, que estava trabalhando 
no artigo que viria a publicar no IJAL, e o artigo de Aryon Rodrigues sobre 
"argumento e predicado" em Tupinambá. Cheguei a apresentar um trabalho sobre 
isso na CLS ("Adjectival meanings in Karajá"). Percebendo que o 
comportamento dos "verbos longos" nos dados da Chris era o mesmo que o dos 
nomes deverbais em Karajá, ficava óbvio para mim o caráter nominal destas 
construções.

Quando conversei com o Spike, num workshop no Oregon (2004?), pareceu-me que 
ele tinha de fato era uma certa relutância em aceitar completamente a origem 
nominal da ergatividade em Jê. Um dos "argumentos" era que os "verdadeiros" 
nominalizadores na língua eram os formadores de nomes de agente e 
instrumentos -- que você demonstra muito bem não serem nominalizadores coisa 
nenhuma (exatamente como seus prováveis cognatos em Macro-Jê: -na e -du). 
Então, se é "'ÓBVIO" para ele agora, não era então.

Mas, se é para historiarmos a origem destas idéias em Jê, eu contaria algo 
que fiquei sabendo através de um(a) colega que participava dos famosos 
workshops sobre ergatividade em Brasília, promovidos pelo Queixalós. Ele(a) 
dizia -- discordando -- que Aryon havia sugerido, durante uma apresentação 
sobre Jê Setentrional, exatamente isto com que estamos de acordo hoje: 
formas longas são verbos, etc. Eu não estava lá e, portanto, desconheço os 
detalhes (já que é comunicação pessoal de comunicação pessoal, pode ser que 
tudo esteja errado, inclusive os personagens envolvidos).

Pelo tom da narração do(a) colega, ninguém pareceu dar muita bola à idéia na 
época. E agora, cá estamos nós todos concordando e dizendo "pô, eu já sabia 
disso desde mulequim..."

Mas agora eu gostaria de saber sua opinião sobre a segunda parte da minha 
mensagem. Mas deixemos isto pro próximo encontro Macro-Jê, ou para algum 
bate-papo pessoal. Fico, a partir de amanhã, sem acesso à internet.

Abraços,

Eduardo

P.S. Em todo caso, se o conceito de "epifenômeno" não cola, talvez possamos 
pelo menos aplicá-lo ao futebol: "Ronaldinho, o epifenômeno" ;)

----- Original Message ----- 
From: "Andrés Pablo Salanova" <kaitire at gmail.com>
To: <etnolinguistica at yahoogrupos.com.br>
Sent: Tuesday, March 16, 2010 6:23 PM
Subject: Re: [etnolinguistica] Epifenomenalidade, etc.


Oi Eduardo:
A verdade é que, até onde sei, a idéia provém da tese de Spike Gildea
(para as línguas Carib, é claro, mas os paralelos com Jê são
surpreendentes), um trabalho que me influenciou muito quando eu ainda
estava no Museu Nacional. No trabalho de 2000 (que foi escrito em
1997, quando ainda tentava acreditar na sintaxe funcionalista) eu e
Amélia sugerimos, sem tratar, a possibilidade de que sincronicamente
há subordinação quando se usam certos "marcadores aspectuais":
p. 11: "Es discutible si en (13b) el núcleo es de hecho el verbo. En
estas construcciones, en que un predicado es seguido de una adposición
sin ser necesariamente subordinado a otra oración (cf. 12a), el verbo
parece de hecho ser el complemento. No discutiremos esto aquí."
Em um trabalho de 1998, que infelizmente perdi (mas cujos argumentos
creio ter reconstruido na tese), fiz o mesmo para a negação.
Na última vez que conversei com Spike sobre o assunto, ele afirmou
que "é ÓBVIO que a ergatividade em Jê vem das nominalizações", e
completou isto com um "é ABSURDO supor que há nominalizações ai
sincronicamente, X (aluna minha) acredita(va?) isso e eu discuti muito
com ela tentando dissuadi-la". Na tese, eu consegui me convencer
(evidentemente não a todos, mas até agora não sei se as razões disto
são realmente racionais) que não há motivos para supor que as
nominalizações ficaram atrás na história do Jê setentrional, pois elas
se comportam sincronicamente como qualquer outro predicado nominal.
Por outro lado, como disse em uma mensagem anterior, não sei se
podemos separar claramente "nominalizações" de "formas não finitas" (o
termo usado no trabalho de 2000)* nas línguas Jê, já que de modo geral
adjetivos e substantivos não são claramente diferenciáveis. O vínculo
entre FNF (particípios em particular) e ergatividade não recebeu tanta
atenção como o que há entre nominalizações e ergatividade, mas acho
que é da mesma natureza (dai os exemplos da ergatividade no francês, e
a menção às línguas indo-árias). Em uma língua em que "krare" quer
dizer tanto "filho (N)" como "com filho (Adj)", não é extranho que
"te~m" queira dizer tanto "a ida (N)" quanto "ido (Part)".
Em qualquer caso não era a minha intenção no artigo supor que você
disse coisas que não disse, só dar um pouco de conteúdo a certas
afirmações que podem ser interpretadas de muitas maneiras (e,
evidentemente, eu prefiro a interpretação sincrônica; diacrônicamente,
tudo é um epifenômeno). Acho útil explicitar estas discussões que
fizeram parte do nosso clima intelectual compartilhado, mas que seriam
difíceis de reconstruir a partir do que saiu publicado.
Até,
Andrés

* NB que se substituirmos "finitud" por "nominalidad" na conclusão de
RS&S 2000, diz mais ou menos o que ambos estamos dizendo agora: "es la
finitud del núcleo [...] la que determina la aparición de estructuras
ergativas[.] [T]enemos que hallar aún una explicación que vincule no
finitud a la obligatoriedad de tales estructuras." Sempre hesitei
entre chamar as "formas longas" de "formas não-finitas" ou "formas
nominais", mas na verdade esta é uma questão meramente terminológica,
não uma distinção real nas línguas Jê. Em algum momento (2000),
conversando com Cristiane, defendi a escolha de "não-finitas"
simplesmente porque acreditava que elas faziam parte do paradigma dos
verbos, e "nominalização" sugeria ao contrário que elas surgiam por um
processo derivacional.

On 16/03/2010, at 16:56, Eduardo R. Ribeiro wrote:

> Prezados,
>
> Gostaria de agradecer ao Andrés pela disponibilização de seus artigos.
> Aproveitando a ocasião, gostaria de esclarecer o que parece ser uma
> interpretação equivocada do que eu escrevi
> (http://www.wado.us/paper:ergatividade). Refiro-me ao seguinte
> trecho do
> artigo do Andrés sobre a ergatividade em Mebengokre
> (http://www.etnolinguistica.org/artigo:salanova-2009):
>
> "Até agora o que temos feito não foi mais do que afirmar que todas as
> construções ergativas em M~ebengokre têm na sua raiz uma oração
> subordinada
> de caráter nominal. Este ponto não é novo no que diz respeito às
> línguas
> amazônicas, e inclusive é possível encontrar na literatura a posição
> em que
> o fato de que haja nominalização
> explica ou descarta a ergatividade oracional. Esta posição é
> articulada com
> respeito às línguas Jê setentrionais por Ribeiro (2004), que
> descreve a
> ergatividade em Jê setentrional como sendo epifenomenal, por estar
> ligada à
> nominalização. Tal afirmação parte de duas premissas: (1) que a
> ergatividade
> nominal deve ser considerada um fenômeno diferente de outros tipos de
> ergatividade, e (2) que o motivo pelo qual as nominalizações são
> ergativas é
> conhecido, e não precisa ser explicado. Ambas premissas devem ser
> questionadas."
>
> Concordo plenamente que estas premissas dever ser questionadas --
> mas não
> são MINHAS premissas. Não há nada nas notas que escrevi que implique
> isso.
> Minhas notas têm um propósito muito simples, modesto até: sugerir
> que todas
> as propriedades das construções ergativas nestas línguas remontam a
> (e são
> ainda explicáveis por) um único fato: o caráter nominal das
> construções em
> que ocorrem. Por mais óbvio que isto pareça, não havia recebido devida
> atenção antes (por exemplo, não é sequer cogitado em Reis Silva &
> Salanova
> 2000). Se qualifico este tipo de ergatividade como epifenomenal, é
> porque,
> geralmente, quando se fala em alinhamento sintático, não se fala na
> estrutura interna de sintagmas nominais (que é o caso aqui).
> Repetindo o que
> escrevi em outra mensagem (http://lista.etnolinguistica.org/2419),
>
> "não digo que ergatividade, para ser ergatividade,
> tem que ser sintática. Entendo, como [Andrés] explica, a raridade da
> ergatividade sintática (e não é à toa que, no tronco Macro-Jê
> inteiro, só
> haja o Karirí). E não digo que a ergatividade em Jê seja menos
> legítima que
> em outros lugares. Quando digo que é epifenomenal, é simplesmente
> porque
> ainda, sincronicamente, continua ocorrendo somente com formas
> nominais do
> verbo. Se estas formas foram reanalizadas como formas verbais, aí
> são outros
> quinhentos. Mas há argumentos para isto? Talvez, nas várias outras
> línguas
> em que ergatividade tenha uma origem em nominalizações, tenha havido
> um
> passo a mais, em que tais construções se tornariam a forma canônica
> e se
> estenderiam para contextos não nominais."
>
> Resta explicar, como diz o Andrés, o porque do caráter absolutivo das
> construções deverbais nessa e em outras línguas. Mas, antes, era
> necessário
> demonstrar que as construções ergativas em questão ocorriam em
> ambientes de
> nominalização -- o que, aparentemente, não havia sido notado por
> muitos até
> então.
>
> Estive pensando, agora, num outro sentido em que o conceito de
> "epifenomenalidade" pode ser útil em lingüística histórica.
> Construções
> assim parecem ter pouca profundidade temporal, o que torna difícil
> determinar até que ponto elas podem ser reconstruídas como tais. No
> caso da
> família Jê -- e, particularmente, das línguas Jê Centrais e do Norte
> --, os
> ingredientes para a ergatividade são claramente reconstruíveis: a
> distinção
> nome vs. verbo, a existência da nominalização lexical como principal
> mecanismo de subordinação, e a posposição genitiva (?). Dados os
> mesmos
> ingredientes, sob circunstâncias parecidas, não seria possível que
> construções ergativas surgissem independentemente em diferentes
> línguas?
>
> Um exemplo mais simples para demonstrar o que tenho em mente é a
> construção
> de futuro em línguas Jê Setentrionais e em Djeoromitxí (família
> Jabutí). Em
> ambos os casos, a posposição dativa (mã em Jê, ma em Djeoromitxí) é
> posposta
> ao verbo para a formação do futuro. Nada surpreendente, atestado
> também em
> várias outras famílias. Embora as posposições nas duas famílias sejam
> cognatas, a construção do futuro não é necessariamente reconstruível
> para o
> Proto-Macro-Jê, já que poderia ter se desenvolvido independentemente
> nas
> duas famílias.
>
> E, por falar nisso, alguém saberia me dizer se o futuro perifrástico
> em
> português, espanhol etc. é reconstruível para o Proto-Romance?
>
> Abraços,
>
> Eduardo
>
>
>



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