Carta aberta do Povo Ashaninka do Alto Rio Envira [1 Anexo]
Juliana Santos
julisantos at GMAIL.COM
Thu Mar 13 18:15:17 UTC 2014
Prezados,
Repasso a vocês Carta Aberta do Povo Ashaninka do Alto Rio Envira com quem
tenho trabalho.
Quem puder contribuir com a circulação desta carta, agradecemos.
Atenciosamente,
Juliana Pereira dos Santos
Linguista, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística da UNICAMP
Pesquisadora do Centro de Estudos de Línguas e Culturas Ameríndias
(Celcam-IEL,UNICAMP) e do Grupo de Pesquisa INDIOMAS - "Conhecimento de
línguas indígenas brasileiras na relação Universidade &
Sociedade"<http://indiomas.iel.unicamp.br/>
Feijó, 13 de Março de 2014.
*Carta Aberta do Povo Ashaninka do Alto Rio Envira à Funai, Ministério da
Saúde, Ministério Público Federal e demais órgãos competentes*
Esta carta aberta tem o objetivo de relatar, informar, denunciar e exigir
providências quanto à privação de direitos e garantias fundamentais pela
qual tem passado o nosso povo. Não são poucas as irregularidades cometidas
por quem tem o dever de nos proteger e promover o gozo pleno de nossa
cidadania e condições para proteção da vida humana.
Os problemas e dificuldades que enfrentamos aqui no município de Feijó são
bem conhecidos por parte dos órgãos oficiais locais: a Coordenação Técnica
Local da Funai e o Pólo Base de Saúde Indígena. No entanto não há muitas
ações efetivas por parte desses órgãos que contribuam para melhorar as
situações degradantes pelas quais passamos e descrevemos a seguir.
*O Direito Social à Saúde*
A saúde em Feijó é um total descaso quando se trata dos índios moradores do
alto Envira, sejamos nós ashaninkas ou nossos parentes madijas. Na maioria
das vezes que nossa gente adoece, só buscamos descer o rio e conseguir uma
ajuda na cidade quando os casos são muito graves e não há melhora com
nossos medicamentos tradicionais. Além do mais, a viagem é demorada e
penosa, pois nem sempre temos combustível para completar a viagem com o
auxílio do motor e temos que prosseguir de bubuia. Muitas vezes nossa gente
morre no caminho (v. Direito a Plena Cidadania).
Quando conseguimos chegar à cidade para o atendimento médico não temos
nenhuma garantia de que ele será feito. Ao procurarmos o Pólo Base de Saúde
Indígena de Feijó, quase sempre não há médico nem medicamentos. Um exemplo
desse desamparo aconteceu com nosso parente João Kampa. João foi carregado
nos braços pelo filho, Fábio Kampa, até o Pólo Base de Saúde Indígena (do
porto de Feijó até o Pólo são aproximadamente 2km), onde foi informado que
ali não havia condições para realizar o atendimento, sendo encaminhado ao
Hospital de Feijó onde foi negado o atendimento porque João é índio. A
funcionária do Hospital disse que o tratamento de indígenas é competência
do Pólo e que o hospital é para atender gente branca como ela. João Kampa
teve que permanecer dentro de sua canoa, no porto de Feijó, sem auxílio
para sua alimentação, sem condições de retornar para sua aldeia, sem
atendimento e sem nenhuma assistência. Fábio Kampa não chegou à cidade
apenas com seu pai doente, mas também com sua mãe, Lura, que ainda se
encontra debilitada dentro de sua canoa, igualmente sem qualquer
assistência dos órgãos competentes. Fábio é Agente de Saúde Indígena (AIS),
formado no último módulo ofertado pela Secretaria no município de Plácido
de Castro, sendo portando reconhecido em sua função pelas nossas lideranças
e pelo Estado, mas desde 2005 trabalha sem contrato, não tendo garantido
seus vencimentos. O tratamento recebido por João Kampa e sua família é só
um caso do que passamos aqui em Feijó; iguais a estes tem muitos outros
casos.
A visita da equipe de saúde do Pólo Base às aldeias do alto Envira mostra
outras situações de descaso pelas quais passamos. Na última visita, em
fevereiro deste ano, o gerador que garante a refrigeração das vacinas
quebrou antes de ser atendida metade das aldeias. Depois do atendimento a
cada família, todos os medicamentos receitados são colocados dentro de um
saco, com todas as receitas, sem muita explicação ou orientação por parte
do médico ou enfermeiro. Nossa população, na sua maioria é monolíngue e não
sabe ler. Sendo assim, saber reconhecer qual medicamento pertence a quem,
de cada família, com todos dentro de um saco, é para nós um verdadeiro
quebra cabeça, que infelizmente não temos ainda condições de resolver, e
para isso necessitamos de auxílio de Agentes preparados. Sabemos que o
medicamento do branco pode nos ajudar, mas a forma como nos é dado pode
mais nos prejudicar do que resolver, pois corremos o risco de tomar o
medicamento errado.
Apesar desses problemas, que sempre se repetem, soubemos na tarde de ontem
que uma nova visita será feita ainda este mês, sem médico e com poucos
medicamentos, contribuindo mais com o descaso com o qual somos
constantemente tratados.
*Direito a Plena Cidadania*
Sabemos que somos ashaninkas, aprendemos que somos índios e que também
somos brasileiros e, como tais, cidadãos. Para o usufruto da cidadania é
exigida uma série de documentos como a Certidão de Nascimento, a Carteira
de Identidade, CPF, cartões bancários, para que nos sejam garantidos também
o direito à previdência social (por meio das aposentadorias de nossos
idosos) e o direito à proteção da maternidade (por meio das licenças
maternidades de nossas mulheres). No entanto, toda vez que necessitamos
fazer o registro civil de nossas crianças e algum de nossos parentes é
monolíngue ou não sabe ler, não há qualquer tipo de ajuda em sua condição.
Pelo contrário, são impostas exigências que não compreendemos bem. Se
necessitarmos fazer o registro civil de um parente adulto, simplesmente não
temos a devida assessoria e assistência oficial para fazer isso.
Um fato comum no deslocamento da aldeia para a cidade (para retirarmos
nossas aposentadorias, salários maternidade, salários dos professores e
agentes de saúde, ou para vir em busca de atendimento médico) é o
alagamento da embarcação; com isso, perdemos nossa comida, o pouco
combustível, nossas poucas batinas, nossos mosquiteiros, e os nossos
documentos sempre solicitados. Se tivermos sorte, nos esforçamos por
recuperar a canoa e o motor e conseguir seguir viagem de bubuia, ou esperar
conseguir a carona de algum parente que passe descendo ou subindo.
Uma vez que algum de nossos documentos é perdido, não conseguimos retirar a
segunda via. Somos informados no Cartório que apenas a primeira via é
gratuita. Se necessitarmos da segunda via, temos que pagar valores
estipulados pela idade; quanto mais velho, mais caro. Na Delegacia de
Polícia, não é diferente. Conseguimos a retirada da primeira via
gratuitamente, mas se precisamos da segunda via não conseguiremos sem o
pagamento de taxas, para as quais não temos dinheiro. Como já foi dito, a
grande maioria da nossa gente ashaninka é monolíngue, não sabe ler e não
tem qualquer tipo de renda em dinheiro. De que maneira então podemos
acessar a cidadania, se a nossa realidade cotidiana não é vista pelas
instituições públicas que deveriam promover nosso acesso a estes direitos
de forma gratuita como nos dizem ser a lei?
Enfatizamos aqui a dificuldade quanto ao registro civil de nascimento, mas
nem falamos da impossibilidade total que é colocada para a retirada da
certidão de óbito, quando morre um parente nosso. Até mesmo quando nosso
parente morre no Hospital não nos é emitido qualquer documento ou certidão.
Se a morte acontece na aldeia ou a caminho da cidade, somos ridicularizados
quando tentamos retirar no Cartório uma certidão de óbito, e não temos
qualquer informação ou assistência para conseguir isso.
Se a falta de documentos e recursos não pode impedir o acesso dos cidadãos
aos benefícios da cidadania, porque então temos tanta dificuldades em
consegui-los?
*Conclusão*
Não expomos nessa carta todos os problemas pelos quais passamos e nem todas
as carências que temos, mas buscamos descrever aqui as nossas necessidades
mais urgentes. Não queremos nada que não seja de nosso direito. Apenas
buscamos por meio dessa carta o auxílio das autoridades competentes para
que nos seja assegurado o que é justo, o que é certo, o que é de direito
nosso e de todo e qualquer cidadão ashaninka ou não. Estamos certos de que
as providências cabíveis serão tomadas para nossa proteção.
Assina a comunidade Ashaninka do Alto Envira
Obs: essa carta apresenta os problemas que relatamos, em conjunto, mas foi
escrita, a nosso pedido, por uma pessoa que apoia nossas comunidades em
educação indígena
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