[etnolinguistica] Prefixos relacionais

Eduardo Rivail Ribeiro erribeir at MIDWAY.UCHICAGO.EDU
Sat Feb 8 18:06:49 UTC 2003


Prezado Sérgio,


Tentarei ser o mais breve possível, em respeito ao seu tempo e ao dos demais colegas. Muito obrigado pela apresentação dos dados do Karib.  Na minha primeira mensagem sobre esse assunto, eu levanto a hipótese de que o relacional tenha surgido originalmente como uma 'consoante de ligação' ("para quebrar hiatos", digamos), mas tal condicionamento fonológico parece ter desaparecido há muito tempo, já que em praticamente todas as línguas Macro-Jê e Tupí de que ouvi falar, há raízes começadas por vogal que não ocorrem com prefixos relacionais. E quanto ao Karib, você teria exemplos de raízes iniciadas por vogal que não recebem prefixos relacionais? O link para a mensagem a que me referi é o seguinte:


http://br.groups.yahoo.com/group/etnolinguistica/message/44


Citando Sérgio:
acha da não-previsibilidade da forma da consoante extra em
Membengokre que o Andres menciona no artigo ? E da aparente 
falta de raizes não alternantes (estáveis)? Você acha que um
tal padrão bastaria para favorecer uma análise morfofonêmica?


Sem dúvida. É o que venho afirmando desde o princípio: que, sincronicamente, a análise morfofonêmica faz sentido. Mas a forma da consoante extra não é tão variada assim: além das palatais (que correspondem a prefixos em outras línguas do tronco), se me lembro bem, Reis e Salanova mencionam /p/ e, se não me engano, /w/ -- o que não perfaz o inventário completo das consoantes da língua, imagino. Aliás, o processo de 'aférese' não é uniforme: enquanto com as raízes começadas por palatais a 'aférese' parece ser total, com as bilabiais há um 'resquício' da bilabialidade. Se compararmos isso com outras línguas da família, veremos claramente que se trata de processos cujas origens são completamente diferentes. É possível que, devido à confluência de dois processos diacrônicos diferentes, a 'aférese' tenha sido reanalisada nessa língua como um mecanismo para a marcação de terceira pessoa. Mas isto seria claramente uma inovação, longe de ser o caso nas demais línguas do tronco. Seria interessante, como o Andrés sugere, fazer testes para aferir a intuição dos falantes com relação a este mecanismo -- mas isso não traria nenhuma contribuição para o dilema quanto à natureza formal do processo (aférese ou afixação). Reanálises ocorrem o tempo todo, resultando tanto na fossilização do prefixo relacional (ou mesmo da marca de terceira pessoa), quanto em 'back-formation' (a reanálise da consoante inicial como prefixo). Exemplos dos dois tipos ocorrem em Karajá, por exemplo. Formas como ha-l-uku 'buraco' (onde o ha- inicial é uma marca de possuidor indeterminado e l- é um prefixo relacional) são comumente analisadas como monomorfêmicas por falantes mais jovens, mas o "correto", segundo os mais velhos, é, naturalmente, a forma que segmenta uku 'buraco' como uma raiz à parte. Assim, alguns jovens podem dizer i-haluku para 'o buraco dele', mas a forma padrão na língua seria t-uku. Na outra direção: em dewe 'dívida', um empréstimo do português dever, a consoante inicial foi reanalisada como prefixo, de modo que temos t-ewe 'dívida dele', wa-d-ewe 'minha dívida', 0-ewe 'tua dívida', etc. [Para aqueles interessados em saber mais a respeito dos relacionais em Karajá, queiram, por gentileza, dar uma olhada no meu artiguinho 'Análise morfológica de um texto Karajá', na página do grupo.]


Citando Sérgio:
regular? Não sei... Ou será que o y- era mesmo um
prefixo de algum tipo, e que ele ocupava a mesma
posíção que o k- dentro da palavra? (Neste caso,
é necessário dizer que o k- ocorre em uma posição
diferente da dos demais prefixos de pessoa. Este


Como eu mencionei antes (vide, por gentileza, o link acima), uma das prováveis vantagens dos 'relacionais' para o estudo histórico-comparativo é o seu valor diagnóstico. O estudo do Spike sobre o Tupi-Guarani é um excelente exemplo disso. O fato de que alguns prefixos pessoais requerem a presença do relacional, enquanto outros não, pode ter a ver com a 'idade' relativa dos dados prefixos. Talvez os morfemas que co-ocorrem com relacionais tenham se tornado formas presas mais tarde, em comparação com aqueles que ocorrem em distribuição complementar com os relacionais. 


Citando Sérgio:
entre os casos observados. No seu artigo, Eduardo, eu pude 
ver que o padrão é, de fato, muito parecido nas línguas 
mencionadas, e que a forma dos possíveis relacionais 
é semelhante (em geral uma palatal).  Mas essas 
correspondências são regulares dentro da família? 
Eu noto a presença de mais de um reflexo em algumas
línguas (você menciona j- e dZ- para parakatêjê, ts- e j-
para timbira, j- e ñ- para apinajé, dz- e ñ- para xavante). 
Claro, são todas formas foneticamente próximas; mas há 
variação entre esses sons em outros contextos nessas
línguas? E há outras exemplos, independentes do
possível relacional, de correspondências entre esses
sons, provenientes dessas línguas? Eu não vi nenhum
exemplo no seu artigo. (Talvez o Davis fale a respeito;
mas eu não conheço o trabalho dele; infelizmente não sou
jeólogo, e não tenho como avaliar o *z dele. Acho só que
mostrar outros exemplos dessas correspondências daria
mais material para os não-jeólogos poderem ter uma
opinião.) 


Sim, Davis aponta correspondências entre estes fonemas em outras áreas do léxico. Como o meu objetivo no artigo era essencialmente demonstrar não só que os prefixos relacionais são reconstruíveis para o Proto-Jê, mas foram de fato reconstruídos por Davis (mesmo sem que ele o soubesse), acabei listando apenas aqueles vocábulos que comprovam este ponto. Incluirei dados mais substanciais na nova versão do artigo (cuja versão preliminar foi apresentada no WSCLA, em Edmonton, Canadá, o ano passado), que inclui também dados das demais famílias (e, claro, dados do Jê que não estavam disponíveis ao tempo em que Davis fez seu estudo). Mas vai ter que esperar um pouco, infelizmente. Enquanto isso, sugiro àqueles mais interessados a leitura dos artigos de Davis (1966, 1968). Ah, sim: o *z do Davis não corresponde ao relacional propriamente dito, mas à marca de terceira pessoa. Exemplos em que a consoante correspondente à marca de terceira pessoa ocorre também em contextos em que é 'estável' foram mencionados de passagem no artigo (o caso das raízes homófonas ty 'semente' e ty 'tecer' em Karajá, que correspondem a raízes homófonas também em Jê; a raiz para 'fogo' é um outro exemplo, inclusive em Karirí). Mas reconheço que faltem exemplos mais substanciais para as correspondências fonológicas envolvendo o prefixo relacional. Espero incluí-los na nova versão do artigo; mas vai demorar um pouco, como eu disse.
No caso dos alomorfes do prefixo relacional, pelo menos em alguns casos são provavelmente fonologicamente condicionados (nasal ~ não nasal); mas é interessante que em outras famílias do tronco, o relacional apresenta alomorfia semelhante (Karajá e Karirí), que não é fonologicamente condicionada -- pelo menos, não sincronicamente. Talvez o estudo comparativo revele as origens desta alomorfia (ou acabemos chegando à conclusão de que a alomorfia já existia na proto-língua). Mas ainda está cedo para isso.


Abraços,
Eduardo


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