[etnolinguistica] Prefixos relacionais

Meira, S. S.Meira at LET.LEIDENUNIV.NL
Sun Feb 9 12:50:44 UTC 2003


Prezado Eduardo,
 

 
E quanto ao Karib, você teria exemplos de raízes iniciadas por vogal que não
recebem prefixos relacionais? 

[Meira, S.] 
Não, nenhum. Tanto quanto eu saiba, nas línguas onde o /y/ ocorre
regularmente (entre um verbo transitivo e seu argumento P, entre uma
posposição e seu objeto, ou entre um substantivo e seu possuidor), não há
nenhuma exceção. Há palavras que contêm um /y/ como parte da raíz (p.ex.
Hixkaryana /yo/ 'dente'), o qual nunca desaparece em nenhum contexto; mas
não parece haver nenhuma palavra começada por vogal que possa tomar um
argumento sem que apareça o /y/.
 
 
Citando Sérgio:
regular? Não sei... Ou será que o y- era mesmo um 
prefixo de algum tipo, e que ele ocupava a mesma
posíção que o k- dentro da palavra? (Neste caso,
é necessário dizer que o k- ocorre em uma posição
diferente da dos demais prefixos de pessoa. Este
 
 
Como eu mencionei antes (vide, por gentileza, o link acima), uma das
prováveis vantagens dos 'relacionais' para o estudo histórico-comparativo é
o seu valor diagnóstico. O estudo do Spike sobre o Tupi-Guarani é um
excelente exemplo disso. O fato de que alguns prefixos pessoais requerem a
presença do relacional, enquanto outros não, pode ter a ver com a 'idade'
relativa dos dados prefixos. Talvez os morfemas que co-ocorrem com
relacionais tenham se tornado formas presas mais tarde, em comparação com
aqueles que ocorrem em distribuição complementar com os relacionais. 
 
 

[Meira, S.] 
 
Isso é bastante possível; o artigo do Spike, criticando a reconstrução de
Jensen,
me parece também um ótimo exemplo de 'detetivismo diacrônico', e acho
bastante
possível que o k- '1+2' das língras karíb seja realmente mais antigo do que
os 
demais prefixos de pessoa. Minha idéia foi apenas que o y- -- caso ele tenha
realmente sido um prefixo -- ocupava a mesma posição morfológica que este
k-,
isto é, que eles estariam, em priscas eras, em oposição paradigmática. Esta
hipótese o Spike não levantou, mas me parece que valeria a pena examiná-la. 
 
 
Citando Sérgio:
entre os casos observados. No seu artigo, Eduardo, eu pude 
ver que o padrão é, de fato, muito parecido nas línguas 
mencionadas, e que a forma dos possíveis relacionais 
é semelhante (em geral uma palatal).  Mas essas 
correspondências são regulares dentro da família? 
Eu noto a presença de mais de um reflexo em algumas
línguas (você menciona j- e dZ- para parakatêjê, ts- e j-
para timbira, j- e ñ- para apinajé, dz- e ñ- para xavante). 
Claro, são todas formas foneticamente próximas; mas há 
variação entre esses sons em outros contextos nessas
línguas? E há outras exemplos, independentes do
possível relacional, de correspondências entre esses
sons, provenientes dessas línguas? Eu não vi nenhum
exemplo no seu artigo. (Talvez o Davis fale a respeito;
mas eu não conheço o trabalho dele; infelizmente não sou
jeólogo, e não tenho como avaliar o *z dele. Acho só que
mostrar outros exemplos dessas correspondências daria
mais material para os não-jeólogos poderem ter uma
opinião.) 
 
 
Sim, Davis aponta correspondências entre estes fonemas em outras áreas do
léxico. Como o meu objetivo no artigo era essencialmente demonstrar não só
que os prefixos relacionais são reconstruíveis para o Proto-Jê, mas foram de
fato reconstruídos por Davis (mesmo sem que ele o soubesse), acabei listando
apenas aqueles vocábulos que comprovam este ponto. Incluirei dados mais
substanciais na nova versão do artigo (cuja versão preliminar foi
apresentada no WSCLA, em Edmonton, Canadá, o ano passado), que inclui também
dados das demais famílias (e, claro, dados do Jê que não estavam disponíveis
ao tempo em que Davis fez seu estudo). Mas vai ter que esperar um pouco,
infelizmente. Enquanto isso, sugiro àqueles mais interessados a leitura dos
artigos de Davis (1966, 1968). Ah, sim: o *z do Davis não corresponde ao
relacional propriamente dito, mas à marca de terceira pessoa. Exemplos em
que a consoante correspondente à marca de terceira pessoa ocorre também em
contextos em que é 'estável' foram mencionados de passagem no artigo (o caso
das raízes homófonas ty 'semente' e ty 'tecer' em Karajá, que correspondem a
raízes homófonas também em Jê; a raiz para 'fogo' é um outro exemplo,
inclusive em Karirí). Mas reconheço que faltem exemplos mais substanciais
para as correspondências fonológicas envolvendo o prefixo relacional. Espero
incluí-los na nova versão do artigo; mas vai demorar um pouco, como eu
disse.
No caso dos alomorfes do prefixo relacional, pelo menos em alguns casos são
provavelmente fonologicamente condicionados (nasal ~ não nasal); mas é
interessante que em outras famílias do tronco, o relacional apresenta
alomorfia semelhante (Karajá e Karirí), que não é fonologicamente
condicionada -- pelo menos, não sincronicamente. Talvez o estudo comparativo
revele as origens desta alomorfia (ou acabemos chegando à conclusão de que a
alomorfia já existia na proto-língua). Mas ainda está cedo para isso.
 
 

[Meira, S.] 
Estarei esperando com prazer por essa versão. Afinal, como
não-(Marco-)jeólogo,
eu realmente dependo da boa vontade dos jeólogos em me explicarem os
detalhes
do seu campo de estudo. Pessoalmente, eu sempre tinha visto o Macro-Jê como
uma colcha de retalhos (uma vez tive ocasião de, junto com a Januacele,
elicitar
dados de Yaathê; e a língua me pareceu tão distante do que eu sabia das
línguas Jê
quanto qualquer língua poderia ser); os seus artigos, parece-me, estão entre
os primeiros a
apresentarem argumentos consideráveis e bem pensados a favor dessa hipótese.
Começo, graças a você e ao Aryon, a considerar a idéia pelo menos plausível.
Espero
que você continue a colecionar argumentos favoráveis. E também, quem sabe, a

hipótese tukajê.
 
Por enquanto, ando considerando apenas o parentesco karíb-tupi (que me apraz
chamar
de 'hipótese katu' -- pois é, eu gosto de nomes compostos; quando converso
com o 
Sebastian Drude sobre Mawé, Aweti e Tupí-Guaraní, referimo-nos a este
possível grupo
como "Mawetí-Guaraní"...). Gostaria de compartilhar aqui com vocês uma ou
duas 
coisinhas interessantes que descobri, e que sugerem que talvez se possa
encontrar
ainda mais. (Apenas para o prazer da leitura; não quero distrair ninguém de
suas
obrigações e prazos. Não se sintam obrigados a responder ou comentar.)
 
(a) Os verbos para 'comer' parecem muito diferentes em Karib e em Tupi. Em
Tupi, temos
um verbo /'u/ (ou /ku/, em Tupari), com um sentido genérico de 'ingerir'
(comer, beber,
respirar, etc.); em Karíb, temos entre quatro e seis verbos diferentes,
especializados
no tipo de comida (beber; comer grãos; comer carne; comer
frutas/ovos/legumes; etc.). 
Dois desses verbos -- com cognatos em quase todas as línguas da família e
portanto
provavelmente reconstruíveis para o proto-Karíb -- terminam em /ku/: /oku/
'comer
pão, beiju, etc.' e /aku/  'comer grãos'. Se levarmos em conta que, em
línguas tupi,
/'a/ é frequentemente o classificador / termo genérico para 'objetos
redondos pequenos',
poderíamos imaginar uma evolução de /a-ku/ 'comer coisas redondas pequenas'
> /aku/
'comer grãos' (note-se que a incorporação de objetos é um fenômeno
encontrável nas
duas famílias; Mawé /'y'u/ 'beber água' seria um caso paralelo). Há certos
resquícios em
línguas karíb de um /a/ ligado à ideia de 'interior', 'algo oco' (talvez
relacionável com
'objetos redondos': o termo /ary/ 'interior; conteúdo' (há um morfema /-ry/
que deriva
formas possuíveis); uma série de posposições locativas baseadas em /a/,
marcando
localização no interior de um objeto tridimensional (p.ex. Tiriyó /awë/
'dentro'); e 
algumas 'derivações misteriosas' entre raízes verbais transitivas que às
vezes
começam com /a/, às vezes não (p.ex. Hixkaryana /koroka/ 'lavar', /akoroka/
'lavar
(o lado de dentro de)'.
 
(b) Há, em línguas karíb, uma série de posposições marcam localização em
(ou direção para, ou origem de) água (as 'posposições aquáticas', como eu
gosto
de chamá-las jocosamente). Nota-se nelas a presença de um elemento /ku/; por
exemplo, Katxuyana /kw-awy/ 'em (água)'. É possível que esse elemento seja
um
antigo morfema para 'água' -- note-se que o que resta da posposição -- /awy/
--
é comparável com outras posposições locativas (cf. Tiriyó /awë/ 'em,
dentro'). Essa
forma /ku/ ou /kw/ aprece em tantas línguas da família que é claramente 
reconstruível. Além disso, há uma série de termos para líquidos que terminam
num elemento /ku/, sincronicamente não-segmentável; exemplos do Tiriyó (com
cognatos em várias outras línguas karíb) incluiriam: /eeku/ 'seiva de
árvore', 
/suku/ 'urina', /eramuku/ 'suor', /etaku/ 'saliva'. Há também o termo
/ikutupë/ 'lagoi',
o qual talvez contenha essa forma /ku/, mais um sufixo de passado (/-typy/,
/-tpo/, /-tpë/ ocorre em muitas línguas com o sentido de 'ex-', 'que não é
mais'). 
Se admitíssemos para este /ku/ o sentido de 'água corrente', /ikutupë/ como
sendo 'água que deixou de correr', 'água estagnada' = 'lago' não seria
impossível. (É claro, não me escapa a possível conexão deste /ku/ com 
o tupi /'y/ 'água' -- que, se não me engano, ocorreria como /ky/ na família 
tupari) e com o /ko/ 'água' que se encontra com freqüência em línguas jê 
(p.ex. Krahô). Willem Adelaar, aqui em Leiden, me diz que há outras
línguas/famílias onde um morfema parecido com /ku/ para 'água' também
existe'.)
 
(c) Finalmente, observo também a quantidade de nomes de insetos 
em línguas karíb que terminam com um sufixo /kë/ ou /ko/. Por exemplo,
Apalaí /masako/ 'mosquito', /nuko/ 'cupim', /xiko/ 'pulga, bicho-de-pé', 
/irako/ 'formiga tocandeira', /turoko/ 'mutuca', /oruko/ 'lagarta' (em
Tiriyó
/maakë/, /nukë/, /sikë/, /irakë/, /turëkë/, /ërukë/; note-se também
/sirikë/ 'estrela', tb. 'vaga-lume'). Estas formas poderiam ser comparadas
com termos para insetos começados com /k/ em linguas tupi, que parecem
reconstruíveis (PTG *kav 'caba', Aweti /kap/, Mawé /ngap/, Xipaya /kapa/, 
Karo /nãp/, Karitiana /ngop/, Gavião /gap/, Mekens /kap/, Munduruku /ikopi/;
ou também 'cupim', Kamayura /kupi'i/, Aweti /kupi'a/, Mawé /nupi'a/, Xipaya
/kupa/, Karitiana /ngyp/, Gavião /góôv-aá/), que também parecem ter um
elemento /ka/, /ko/. (Considere-se também o termo karíb /okomo/ 'caba,
abelha', já mencionado, creio, pelo Aryon.)
 
São três indícios interessantes. Preocupa-me um pouco o fato de
os três serem foneticamente muito parecidos: /ku/ 'comer', /ku/ 'água', 
/ko/ ~ /kë/ 'inseto'... não sei não. Mas, afinal, ainda não estou afirmando
nada; estou só juntando 'coincidências curiosas'...
 
Abraços,
 
Sérgio
 

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