Sotaques brasileiros

Beni Borja - Psicotronica beni at PSICOTRONICA.COM.BR
Sat Nov 22 19:36:46 UTC 2008


Prezado Eduardo, 

Muitíssimo agradecido pela sua atenção.  Foi ótimo saber que o tema também te interessa. Suas considerações foram altamente esclarecedoras ,embora algo decepcionantes. 

Confesso que me senti como uma criança que tem sua bola furada. Minha tese parecia tão bacana!  Mas isso é que dá ser "intelectual de miolo-mole" como alguém já chamou o Caetano , numa definição que cabe bem para todos os artistas. 

De fato, não considerei que entre o português e as línguas indígenas  houve a língua geral, coisa que eu sabia, entre outras fontes pelas minhas leituras do Capistrano.  Aliás , acho que foi no Capistrano que li que os bandeirantes chamavam de "gente da língua travada" as populações indígenas do interior , no que me pareceu um referência as línguas do ramo macro-jê ( é isso mesmo ? ou estou viajando na maionese mais uma vez?),

O "travamento" a que eles se referiam , no meu delírio "miolo-molístico" me remeteu ao nosso querido "r" retroflexo, mas suas considerações revelam a inconsistência da minha conjectura. 

Na verdade a minha primeira idéia sobre esse tema veio do sotaque nordestino. Tenho avós potiguares e cearenses , como vc. cresci num ambiente "bi-lingue". Se a cultura "caipira" ainda tem referências presentes da cultura indígena ( meu disco favorito do momento é "O canto da Terra" da dupla Cacique e Pajé, conhece?), no Nordeste a presença da cultura indígena é totalmente rejeitada. 

Meu avô Francisco, potiguar da Chapada do Apodi, de uma família estabelecida há séculos naquela região, era fisionômicamente um índio. Entretanto , rejeitava e se sentia mesmo ligeiramente ofendido, se alguém fizesse referência a antepassados indígenas. Pensei que fosse uma indiosincrasia pessoal, mas com  passar dos anos percebi que era um traço marcante da cultura "nordestina" a rejeição total da cultura indígena.  Algo que implicaria que em algum momento da história teria descido em algum lugar do sertão nordestino uma espaçonave com extra-terrestres de cabeça chata.

A negação sistemática da contribuição indígena a nossa cultura  é certamente algo com a qual vcs. estudiosos estão acostumados ,até porque deve ser um elemento essencial da dificuldade das pesquisas , mas para mim foi um choque.  Foi tentando ver aonde subsiste "o índio" no brasileiro de hoje , que comecei a me interessar por esse tema. Quando os recentes estudos sobre o DNA do brasileiro, comprovam científicamente o que nós já vemos na cara das pessoas , me parece que esse é um tema à tratar em arte.

A gente bebe mate e guaraná , fala mil palavras em tupi-guarani , faz festas ritualizadas em qualquer evento  e acha que índios são só quem vive em aldeia... Os indios somos nós também, não é?   

Ou seja, eu estava tentando do meu modo meio "psicodélico" estabelecer uma certa continuidade cultural entre os brasileiros de hoje e os povos indígenas pré-descobrimento, um exercício que me parece fundamental para o nosso psique-nacional. Me parece que para vencermos definitivamente o nosso complexo de vira-lata , para que a nossa auto-estima não seja uma reflexo contra-fóbico do nosso complexo de inferioridade, para que nos sintamos confortáveis nessa pele "vermelha" de brasileiros , é preciso se re-encontrar com o índio, mesmo que seja numa invenção de passado. 

Digo isso tudo porque , apesar da minha "bola furada" continuarei usando o verso  -línguas mortas viram sotaques" -  em uma canção (ainda inédita) que eu fiz chamada "Viagem de Volta" ( título surrupiado duma coletânea organizada pelo antropólogo João Pacheco de Oliveira sobre a reelaboração cultural no Nordeste indígena). 
 
Mas voltando ao tema , e a exploração da sua boa vontade em ensinar um ignorante. Existem no nosso léxico centenas de palavras a que são identificadas como originárias do tupi-guarani , imagino que sejam as que se incorporaram a lingua-geral. Me pergunto , e o jê? , ficou só nos toponímicos? Ou existem palavras que usamos ainda hoje de origem jê? 

 Agradacendo mais uma vez a sua generosidade, 

  um abraço

Beni

   

  



  ----- Original Message ----- 
  From: Eduardo Rivail Ribeiro 
  To: etnolinguistica at yahoogrupos.com.br 
  Sent: Friday, November 21, 2008 6:45 PM
  Subject: Re: [etnolinguistica] Sotaques brasileiros


  Prezado Beni,

  Obrigado por levantar este tema, de fato fascinante. Também andei matutando 
  a respeito e cheguei mais ou menos à conclusão de que a raiz da diversidade 
  dialetal do português brasileiro se deve mais à diversidade original do 
  português trazido para cá (que não era homogêneo e muito menos padronizado) 
  e às peculiaridades do povoamento das diversas regiões do país do que a 
  fatores de substrato (ou seja, à influência de línguas que eram faladas 
  antes da chegada do português). Talvez o desenvolvimento de línguas gerais 
  baseadas no Tupí da Costa, e que acabaram sendo adotadas por todos os grupos 
  étnicos que compunham a sociedade colonial na maior parte da América 
  portuguesa, tenha prevenido que línguas indígenas regionais tivessem um 
  impacto maior no português que, mais tarde, se tornaria a língua 
  predominante.

  Não que eu tenha feito uma pesquisa aprofundada do assunto, levando em 
  consideração todos os dialetos do português brasileiro. Meu interesse diz 
  respeito principalmente ao chamado "dialeto caipira" (meu dialeto nativo), 
  que é falado justamente em regiões colonizadas inicialmente pelos 
  bandeirantes paulistas. Como estes falavam, então, a Língua Geral Paulista, 
  uma pergunta natural seria se o dialeto caipira teria recebido uma 
  influência Tupí maior (quando comparado com, digamos, o português do Rio).

  Por exemplo, seria o chamado "r caipira" (ou seja, a pronúncia retroflexa do 
  "r" em posição de coda silábica), que é a característica mais marcante (e 
  discriminada) do português caipira, um resquício de alguma língua indígena? 
  Como a Língua Geral Paulista era difundida nestas regiões, seria o suspeito 
  ideal. Mas é bastante improvável, não só porque o Tupí da Costa (e 
  provavelmente suas descendentes, as línguas gerais) não tinha tal pronúncia, 
  mas porque uma explicação interna é ainda mais plausível: o lingüista Brian 
  Head, que foi professor da Unicamp e está agora, se não me engano, em 
  Portugal, tem um artigo bastante interessante sobre o desenvolvimento do "r 
  caipira" a partir de fatores internos do próprio português. [Vou ver se 
  encontro o artigo por aqui, para aqueles que se interessarem.]

  Como tem sido demonstrado por vários autores (por exemplo, Naro & Scherre), 
  muitas das características que se imaginam serem tipicamente brasileiras e 
  até indício de "crioulização" em alguns dialetos do português brasileiro já 
  ocorriam em Portugal, antes da "descoberta". Muitos são resultados de 
  tendências características no desenvolvimento das línguas românicas, nos 
  dois lados do Atlântico. No caso do dialeto caipira, os mesmos fatores que 
  favoreceram no início o uso da Língua Geral Paulista (ou seja, isolamento, 
  fluxo menor de imigrantes portugueses) favoreceram a preservação de 
  arcaísmos e o desenvolvimento de características peculiares, longe das 
  tendências padronizantes que porventura ocorressem na costa e na metrópole. 
  Em um artigo que escrevi há algum tempo sobre o assunto, menciono uma coisa 
  que sempre achei interessante, desde menino (já que, como descendente de 
  mineiros e baianos, cresci em "lar bilingüe"): o português falado em regiões 
  que sofreram miscigenação mais intensa tende a ser mais próximo ao "padrão". 
  É que regiões de fácil acesso e economicamente prósperas (Belém e Salvador, 
  por exemplo), que mais necessitaram mão-de-obra indígena ou africana, foram 
  também as que mais atraíram um fluxo contínuo de imigrantes portugueses.

  É claro que, quando falo em "influências" acima, tenho em mente influências 
  estruturais, na fonologia, na morfologia e na sintaxe (ou, até, na 
  semântica). Neste aspecto, especificamente, não há nada que se possa em 
  definitivo atribuir a influências indígenas. O léxico, naturalmente, é 
  outra história. Além do número enorme de termos de origem Tupí que 
  sobrevivem no português falado no país inteiro, há aqueles que tendem a ser 
  mais comuns onde a influência cultural indígena teve um impacto maior -- a 
  cultura caipira sendo uma delas. Mas isto, parece-me, não é o que vem à 
  mente quando se fala em "sotaques diferentes".

  No caso do léxico, sim, acham-se exemplos de influências indígenas locais no 
  português de certos lugares onde índios e não índios conviveram (ou ainda 
  convivem). Por exemplo, em São Félix do Araguaia, não é incomum que um não 
  índio use palavras Karajá como kòhã 'cachaça' ou kutura 'peixe'. E me lembro 
  de um bate-papo com Lucy Seki, maior especialista em Krenák, em que ela 
  mencionava o uso de palavras como curuca 'criança' no português de áreas 
  tradicionalmente Krenák (cf. Krenák kruk) -- se não me falha a memória (é 
  isso mesmo, Lucy?).

  Bem, espero que esta conversa não pare por aqui. Alguém saberia de exemplos 
  de influências exercidas por línguas regionais em certos dialetos do 
  português brasileiro?

  Abraços,

  Eduardo

  ----- Original Message ----- 
  From: Beni Borja - Psicotronica
  To: etnolinguistica at yahoogrupos.com.br
  Sent: Thursday, November 20, 2008 8:52 AM
  Subject: [etnolinguistica] Sotaques brasileiros

  Prezados Professores, Doutores e Sabidos em geral,

  Com a cara-de pau que a internet me faculta , me atrevo a invadir esse 
  espaço de doutas discussões para propor uma questão que me aflige.

  Sou um mero músico/ ompositor popular , leigo por completo nas artes e 
  manhas da etno-linguística, mas um profundo curioso sobre a intercessão 
  entre as linguas e a história.

  Num colóquio etílico recente com um amigo, discutíamos sobre os diversos 
  sotaques do Brasil. Inspirado por Baco fiz a temerária afirmação que os 
  nossos diversos sotaques regionais, tem sua gênese nas línguas indígenas 
  faladas naquelas regiões antes do aparecimento do português.

  É com certeza uma afirmação que tem a leviandade típica dos ignorantes, que 
  despreza a enorme complexidade da presença indígena antes da invasão 
  portuguesa e as dificuldades de estabelecer um nexo causal entre o português 
  falado hoje e as línguas faladas pelos índios.

  Mas não obstante essas dificuldades , teria a minha tese algum farrapo de 
  evidência para sustentá-la??

  Agradecendo desde já a "ajuda dos universitários" que por ventura receba,

  abraços

  Beni Borja




   
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