[etnolinguistica] =?x-user-defined?Q?Sobre_o_'marcador_de_posse_alien=E1vel'_em_J=EA?=
Eduardo Rivail Ribeiro
erribeir at MIDWAY.UCHICAGO.EDU
Sun Jan 19 01:50:24 UTC 2003
Prezados colegas,
Tenho mantido correspondência com alguns colegas a respeito de alguns aspectos da morfologia Macro-Jê e, como a lista conta agora com um bom número de especialistas em línguas Jê, achei que seria uma boa idéia estender a discussão ao grupo inteiro. Pode ser que algumas dessas questões venham a ser do interesse também daqueles membros da lista que lidam com línguas Tupi.
Ficaria extremamente grato se vocês pudessem compartilhar comigo suas idéias a respeito das questões formuladas abaixo. Todas elas surgiram de um artigo que escrevi sobre o marcador de posse alienável em Kariri, arquivado na página do grupo. O que deveria ser, em princípio, um artigo curto sobre o prefixo u- do Kariri, acabou se tornando algo mais extenso, de cunho comparativo. O artigo serviu para levantar algumas questões interessantes, tanto de um ponto de vista histórico-comparativo, quanto morfossintático e tipológico, que estou investigando agora. Pretendo apresentar um trabalho a respeito destes morfemas, abordando todas estas questões, no próximo encontro da Berkeley Linguistics Society (o resumo está arquivado na minha pasta na página do grupo), agora em fevereiro. Portanto, ficaria extremamente grato por quaisquer esclarecimentos que vocês possam fazer acerca do comportamento destes morfemas nas línguas Jê (além, é claro, de outras línguas).
1.
O morfema in. Como mencionado no artigo, além do morfema õ (que, como Aryon Rodrigues demonstra, apresenta prováveis cognatos em Jê, Kariri, Maxakali e Boróro), há um outro morfema de funções muito semelhantes, in. Este morfema ocorre em Akwen (Xerente e Xavante) e Panará e, como eu sugiro no artigo, pode vir a ser cognato de um morfema Tupi (que ocorre, por exemplo, em Tupinambá: xe-r-e-kuia minha cuia, xe-r-e-panaku meu cesto, xe-r-e-mi-ngau meu mingau, etc). Reforçando a idéia de que o morfema Macro-Jê e o Tupi são cognatos está o fato de que, em ambos os troncos, tais morfemas pertencem à classe de lexemas que recebem prefixos relacionais. Meu recente trabalho de campo com o Ofayé (setembro-outubro/2002) revelou a existência nesta língua de um morfema provavelmente cognato com o Jê in (e o Tupi e-). Em Ofayé, o marcador de posse alienável é xi, que alterna com hin (o n final aqui simplesmente representa a nasalidade da vogal precedente); a alternância entre h- e x- corresponde à alternância entre o prefixo relacional e o marcador de terceira pessoa nesta língua (algo com que tupinistas e jeólogos estão bem familiarizados). Além disso, a diferença entre as vogais de um e outro alomorfe é provavelmente devida a razões fonológicas; note-se que ainda não encontrei, em meu corpus do Ofayé, a fricativa palatal sendo seguida de /i/ nasal.
O interessante é que, entre as línguas Jê, a única que parece apresentar ambos os marcadores de posse alienável, que eu prefiro chamar simplesmente morfemas alienadores ou aplicativos nominais no meu artigo, é o Panará (mui competentemente descrito pela Luciana Dourado). Assim, há de se supor que ambos teriam certamente existido em Proto-Jê, ainda que seja cedo para se dizer se já estavam então no caminho de gramaticalização que resultou no que temos nas línguas de hoje. A julgar pelas descrições de que disponho, apenas õ ocorreria nas demais línguas Jê do Norte, e apenas in ocorreria em Jê Central (Akwen). [Cognatos de ambos os morfemas parecem ocorrer também em Jê do Sul, mas não parecem desempenhar a função de alienadores.] A minha primeira pergunta seria, portanto, a seguinte: Haveria quaisquer indícios da ocorrência de cognato deste segundo morfema alienador, in, em Jê do Norte?
2.
Posse inerente versus propriedade. Em Ofayé, um uso interessante do morfema alienador é a sua ocorrência com nomes que são obrigatoriamente possuídos para assinalar propriedade, em oposição a posse inerente: xà-ye minha gordura (do meu corpo); a-xi ye minha gordura (que eu uso para fritar comida). Nas línguas Jê, eu ainda não vi dados que comprovem isto, mas presumo que o marcador de posse alienável possa ser usado com nomes de partes de um todo para estabelecer uma distinção entre posse inerente e posse secundária, a exemplo do que ocorre com algumas raízes opcionalmente possuíveis em Apinajé (ver, por exemplo, meu cesto (que eu fiz) versus meu cesto (que eu comprei)). Portanto, seria interessante saber como se diz:
meu dente versus meu dente de macaco (para fazer colar)
minha coxa versus minha coxa de galinha
meu osso versus meu osso (para fazer ponta de flecha)
minha carne (do meu corpo) versus minha carne (que eu comprei no açougue)
o leite dela (mesma) versus o leite dela (que ela comprou)
a pena dele (do pássaro) versus a pena dele (do homem, para fazer cocar), etc.
3.
Aposto? Em sua tese, Luciana Dourado sugere que o nome de significado específico que ocorre depois do morfema alienador (roça em minha-COISA roça) é, de fato, um adjunto, um aposto. Parece-me que o Ludoviko chega à mesma conclusão, para o Suyá. Eu tendo a concordar com esta análise, mas seria interessante checar esta hipótese através de certos testes sintáticos. Por exemplo, no caso dos classificadores possessivos em Kariri, o nome específico é precedido da preposição oblíqua do, que geralmente ocorre em construções apositivas (Maria do Tupã ide Maria, mãe de Deus). Isto não ocorre no caso do cognato do morfema alienador, que representa um estágio mais avançado de gramaticalização (sendo o que é, um prefixo). No caso das demais línguas do tronco, no entanto, não parece haver evidências semelhantes para o caráter apositivo do nome específico (pelo menos, não nas descrições de que eu tenho notícia).
Um teste especialmente interessante seria incorporação nominal, um processo que, geralmente, aplica-se principalmente ao núcleo do sintagma nominal possessivo. Em línguas que permitem a incorporação de cesto, por exemplo, esperar-se-ia que este nome só se incorporasse quando possuído diretamente, mas não quando possuído com a intermediação do marcador de posse alienável, o que demonstraria uma mudança no status sintático do nome. [De novo, a analogia com aplicativos: mesmo em línguas que admitem dois objetos diretos, quando ocorre aplicação, o objeto básico perde muito de suas propriedades sintáticas, que são transferidas para o novo objeto.]
Minhas dúvidas seriam as seguintes: (i) o marcador de posse inalienável pode se incorporar ao verbo? (ii) um nome possuído com a intermediação do marcador de posse alienável pode ser incorporado? (iii) o nome de significado mais específico pode ser separado do sintagma contendo o marcador de posse alienável? Por exemplo: ela coisa-dela derramou, o leite; ele coisa-dele=para foi, a roça? Parece-me que incorporação nominal não seria um teste disponível na maioria das línguas Jê, exceto, talvez, o Panará. Mas talvez outros testes (elegibilidade para promoção a sujeito, no caso de passivização (ou construções equivalentes, por exemplo) possam vir a ser de alguma ajuda.
4.
Grau de gramaticalização. Minha última questão diz respeito ao grau de gramaticalização dos morfemas alienadores nas diversas línguas. Apesar de o marcador de posse alienável ser chamado de pronome (Boróro, descrito por Crowell), partícula (Xerente, descrito por Krieger & Krieger) e prefixo (Xavante, por McLeod & Mitchell), em nenhuma das fontes que eu consultei há evidências gramaticais que permitam separar o comportamento dos morfemas alienadores do de outros nomes (exceto em Tupinambá e Kariri, em que prováveis cognatos dos marcadores de posse alienável ocorrem como prefixos). Haveria tais evidências? Nomes de significado genérico, como os nossos õ e in, são bons candidatos para se tornarem pronomes. Portanto, caso tenham se tornado pronomes em algumas dessas línguas, o nome específico provavelmente permaneceria como o núcleo do sintagma possessivo. Neste caso, duas séries de morfemas pronominais possessivos teriam surgido mas, em ambos os casos, o nome de significado específico manteria seu status de núcleo.
Bem, essas são algumas das questões. Ficaria muitíssimo grato por quaisquer esclarecimentos que vocês possam fornecer. Naturalmente, ficaria feliz em compartilhar eventuais achados com os demais assinantes.
Desde já, muitíssimo obrigado.
Abraços,
Eduardo
Eduardo Rivail Ribeiro
Department of Linguistics (University of Chicago)
Museu Antropológico (Universidade Federal de Goiás)
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