[etnolinguistica] Fwd: Comentários sobre o documento de Storto & Sândalo
Aryon Rodrigues
aryon at UNB.BR
Tue Jul 8 21:45:16 UTC 2003
> Comentários sobre o documento de Storto & Sândalo
>
> O documento se refere a uma 'reivindicação' não formalizada de
> professores indígenas, mas contém uma argumentação de ordem técnica,
>muito mais própria de uma polêmica no campo da lingüística. Na década dos
>anos 70, o SIL (Summer Institute of Linguistics) reivindicava esse mesmo
>tipo de
> padronização para as diferentes línguas indígenas na América Latina, no que
> se refere às suas propostas ortográficas, polemizando tanto com os
>lingüistas das Universidades, que trabalhavam na descrição dessas línguas,
>quanto com as ordens religiosas que tradicionalmente tinham adaptado a
>ortografia
>do espanhol. E também nesse caso, para dar 'legitimidade' ao debate, eram
>usadas as reclamações dos índios, num e outro sentido.
> É interessante que o campo de polêmica se instale na questão
> ortográfica. Quando foi declarada oficial a língua Quechua (1973), houve
>uma discussão que reflete uma questão chave: a escrita é uma prática
>social e a
> ortografia é uma instituição histórica, sujeita a esses conflitos
> ideológicos. O sistema vocálico do quechua está composto por três
> vogais: /a/, /i/ e /u/. No momento de decidir quais seriam as grafias para
> esses sons, os lingüistas, entre os quais há falantes nativos, propuseram
>(a), (i) e (u) para representá-los. A Academia Cusquenha de Quechua
>retrucou com
> indignação que era insultante a língua espanhola ter cinco vogais e o
>quechua somente três. A questão foi resolvida negociando. Os lingüistas
>admitiram
>que os alofones [e] e [o] deviam ser incorporados, assinalando os
>contextos, em
> função da 'reivindicação', mas principalmente porque se reconhecia a
>situação de contato que tinha determinado essas atitudes.
> Uma conseqüência desse ´racha´ pode ser observado na forma de
> escrever o
>nome dessa língua: na parte peruana, se escreve quechua com o permitido
>[e], e,
>no Equador, se escreve quichua. O principal aspecto que deve ser levado em
>conta é a
>natureza histórica e social da escrita e da ortografia, portanto,
>entendida como uma
> criação coletiva, não como uma questão meramente técnica, embora dialogue
>com esse conhecimento. A forma de conceber a escrita como uma
>representação dos
> sons corresponde à lingüística dos anos 50 e, talvez, essa representação
> idealizada guarde relação com as representações que as sociedades
>ocidentais elaboraram sobre essa prática social.
> Um ponto que merece destaque, ainda no documento, é a representação
> naturalizada da escritura alfabética da língua portuguesa, como coerente. A
> questão está tão ideologizada que o 'nativo' tem dificuldades em reconhecer
> as incoerências gráficas da ortografia alfabética das línguas oficiais dos
> estados modernos, inclusive a língua portuguesa. Grafar um (h) mudo,
> representar o mesmo som com grafias diferentes (x), (ch), são
>inconsistências no mesmo sentido argüido no documento. Aqui vai uma
>amostra de mais
> inconsistências que os nossos filhos aprendem e os pais toleram:
>
> assobio - assovio
> covarde - cobarde
> covardia - cobardia
> quatipuru - acatipuru
> quatorze - catorze
> quociente - cociente
> quota - cota
> quotidiano - cotidiano
> quotiliquê - quetilquê ( 'coisa, pessoa de pouca importância; ninharia )
> quotista - cotista
> quotizar - cotizar
> quotizável - cotizável
> perda - perca (essa última de uso popular, encontrando-se, porém,
> dicionarizada).
> vasculhar - basculhar
> vasculho - basculho ('vassoura de cabo comprido para limpeza de tetos e
> paredes altas')
>
> Tudo isto devidamente dicionarizado!
> É que a questão ideológica, apesar da roupagem técnica, fala mais alto.
>
> Rio de Janeiro, 07 de julho de 2003
> Consuelo Alfaro (UFRJ)
>
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