"ACERVOS LINGÜÍSTICOS: Para compreender as línguas indígenas"
Renato Athias
renato.athias at GMAIL.COM
Wed May 21 14:02:10 UTC 2008
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http://www.observatoriodaimprensa.com.br/ofjor/ofc05072000.htm
ACERVOS LINGÜÍSTICOS
Para compreender as línguas indígenas
Ceci Maria Aparecida Honório (*)
Desde as primeiras publicações sobre o tupinambá ou tupi antigo, entre as
quais destacamos a *Arte de gramática da língua mais usada na costa do
Brasil *– obra do Padre Anchieta datada de 1595 –, outros estudos
descritivos foram sendo produzidos, sustentando sobretudo os trabalhos de
tradução da literatura religiosa nesta e em outras línguas indígenas. Os
relatos de missionários e viajantes da época passam a constituir, por outro
lado, material de base para a elaboração de dicionários bilingües
(português/línguas indígenas) e para a construção de uma historiografia
brasileira. Destes estudos decorrem outros subseqüentes, compondo um vasto
conjunto de documentação sobre as línguas do Brasil, hoje diluído em alguns
arquivos públicos ou incorporado a acervos, na forma de "coleções".
Vamos nos centrar aqui no modo de organização de dois arquivos que, ao lado
de outros não menos importantes, estão representados como centros de
referência para pesquisas em línguas indígenas. Trata-se do antigo acervo de
Plínio Ayrosa, atualmente incorporado ao acervo do MAE (Museu de Arqueologia
e Etnologia da USP), e da Coleção Línguas Indígenas do Brasil, que hoje
integra o Cedae (Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulálio), no
Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp.
Queremos mostrar que o arquivo tem uma direção: o gesto de organização de
arquivo, ao incorporar um documento, rejeitar outros, exerce um determinado
controle da memória social, projeta leitores possíveis nos acontecimentos de
linguagem. Assim, tais arquivos tornam ou não visíveis certos saberes
acerca, neste caso, das línguas do Brasil. O acesso a este tipo de
conhecimento não se dá, pois, pelo mero fato de o arquivo ter uma existência
real. E sim pelo processo histórico de sua constituição, modo de
constituição de saberes. Deste ponto de vista, o arquivo é, ao mesmo tempo,
lugar de constituição e de institucionalização destes saberes. Lugar de
regulação do conhecimento, que, portanto, não é neutro.
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Plínio Ayrosa: pesquisa e divulgação
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Em 1934, introduzindo a cadeira de Etnografia e Línguas Tupi-Guarani na
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, Plínio Ayrosa passou a se
dedicar aos estudos do tupi, vindo a fundar o Museu de Etnografia que levou
seu nome. Neste arquivo estão organizadas documentações coordenadas,
prefaciadas, comentadas ou traduzidas por Ayrosa, referentes aos trabalhos
lingüísticos de missionários e viajantes: relatos, vocabulários, dicionários
bilingües (português-tupi), literatura religiosa (orações, catecismos,
diálogos, poemas etc). De sua autoria são também os estudos dos designativos
de origem tupi-guarani empregados na língua portuguesa do Brasil,
encontrados nos relatos de missionários, viajantes, na literatura
alencariana, na perspectiva geográfica (toponímias) e etimológica.
Ao organizar um certo saber sobre o tupi, o arquivo cria condições para uma
maior visibilidade dessa língua no país, pela veiculação deste conhecimento
na imprensa. Grande parte desta produção foi publicada, principalmente no
Arquivo Municipal de São Paulo e no jornal *O Estado de S.Paulo*. Já em 1933
o autor havia publicado suas "Primeiras noções de tupi" no *Diário
Oficial*do Estado de São Paulo.
Este modo de circulação de saberes, que apresenta a língua tupi como "a
língua indígena", produz um certo controle da memória social acerca das
outras línguas faladas no Brasil Colonial, ao mesmo tempo em que contribui
na construção de um imaginário de língua indígena. É importante lembrar que
a língua representada neste arquivo corresponde ao tupi gramatizado, ou
seja, aquele que resultou da sistematização das línguas da família tupi.
Desse trabalho de gramatização feito pelos jesuítas, resulta também outras
obras escritas em Tupi: poesias, teatro, compondo a literatura religiosa. A
formação deste corpo lingüístico assim organizado produz um estatuto
diferenciado a esta língua relativamente as outras línguas indígenas faladas
no país: o tupi antigo passa a funcionar como língua de transição entre
culturas. Torna-se, ao lado do latim, língua de catequese, lugar de
possibilidade da expansão da doutrina católica e do projeto colonialista.
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Coleção de línguas
*
Passemos agora ao arquivo organizado pelo professor Aryon Dall'Igna
Rodrigues, em um trabalho mais recente. O arquivo, que compõe a intitulada
"Coleção Línguas Indígenas do Brasil", foi criado em 1973, no Instituto de
Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, por iniciativa do professor. Nele
constam, quase que exclusivamente, documentos produzidos por missionários do
SIL (Summer Institute of Linguistic). Tendo iniciado seus trabalhos no país
na década de 50, auge da lingüística sincrônica, o Summer produziu um
volumoso material descritivo sobre as línguas indígenas, relativamente a
outros estudos de lingüistas brasileiros. A serviço das Novas Tribos do
Brasil (igrejas fundamentalistas americanas), no que concerne à tradução do
novo testamento em línguas indígenas, para evangelização dos povos que as
falam, divulgou seu Arquivo Lingüístico, com sede própria em Porto Velho
(RO), com algumas instituições (científicas ou não), sendo acolhido também
em centros de documentação, tais como o da Funai e o do Museu Nacional, duas
grandes referências sobre o assunto, só para se ter uma idéia.
Os documentos pertencentes a esse arquivo se dividem em estudos sincrônicos,
vocabulários, dicionários bilingües, textos indígenas, vocabulário padrão
para estudos comparativos nas línguas indígenas brasileiras. Há também os
textos indígenas que incluem temas do cotidiano, lendas, sendo muitos destes
textos com tradução bilingüe não só na língua indígena/português como também
em língua indígena/inglês. Levando-se em consideração a presença de muitos
missionários-lingüistas em área indígena já há mais de 40 anos, chama-nos a
atenção o fato de que grande parte do material lingüístico que compõe o
arquivo se apresenta em versões incompletas e rascunhadas. É relevante ainda
notar que o trabalho de tradução do *Novo Testamento*, embora bastante
representativo em termos quantitativos, não consta da Coleção do Cedae – à
exceção da documentação referente à língua catalogada como Mawé (Sateré), em
que se encontram os textos *Questions on God* e *Sateré biblie terms*, em
inglês e sem data. Segundo dados da Associação das Missões Transculturais
Brasileiras (AMTB, 1999), já foram traduzidas ou estão em processo de
tradução para as línguas indígenas cerca de cinqüenta bíblias, o que
significa que mais de um quarto das populações indígenas brasileiras já têm
o *Novo Testamento* na sua língua.
O procedimento que exclui este tipo de texto religioso por aporte do SIL, ao
mesmo tempo em que controla a cientificidade do arquivo, restringe o acesso
aos processos históricos que determinaram sua constituição. Esse
procedimento se faz tanto explicitamente, negando-se ao texto a sua inclusão
no acervo, quanto implicitamente, pelo modo de categorização deste arquivo –
intitulado *Línguas Indígenas do Brasil* – que não refere o SIL no processo
de sua nomeação. Este gesto de leitura acoberta o discurso religioso pela
transparência do discurso científico. Além disso, a incorporação de alguns
poucos textos/artigos relativos a estudos de pesquisadores brasileiros, dos
quais destacamos o do próprio professor Aryon Rodrigues, e de um missionário
salesiano, o padre Casimiro Beksta, parece favorecer a legitimação deste
arquivo como um outro, que não corresponde ao arquivo do SIL. Rejeitar
alguns, incorporar outros. Gesto de leitura que implica responsabilidade.
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Institucionalização de saberes
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Como vimos, a visibilidade de um certo tipo de produção lingüística como
trabalho científico se constrói pela própria instituição que acolhe este
arquivo. Constata-se a utilização de dados do arquivo do SIL fundamentando
trabalhos acadêmicos concernidos ao estudo das línguas indígenas. O livro de
Aryon Rodrigues, *Línguas Brasileiras – para o conhecimento das línguas
indígenas*, referência bastante significativa nos cursos de Lingüística
Indígena e/ou Lingüística Antropológica, como são chamados, apresenta também
ampla divulgação do material produzido pelo SIL, tendo em vista a escassez
de trabalhos científicos concernidos por lingüistas brasileiros
especializados na área até a década de 70.
Outro aspecto relevante a ser considerado no processo de constituição do
arquivo é que no próprio momento em que ele se organiza para exercer também
um papel na divulgação de seu material, ele projeta alguns leitores
possíveis: "As equipes do SIL estão preparando para arquivamento e possível
futura publicação, coleções de textos indígenas em formato interlinear com
análise morfêmica e tradução livre. Este material será de grande interesse
para etnólogos (o conteúdo dos textos) e lingüistas (a gramática dos
textos.)". Sem nos esquecer da projeção de um outro leitor: aquele que
domina a língua inglesa. Muitos desses estudos estão escritos nesta língua.
Este gesto de organização produz um efeito de regulação do trabalho de
leitura de arquivo: quem deve ler o quê? A memória desses saberes fica assim
reservada a certos especialistas.
Um outro lugar de divulgação deste tipo de produção científica, não
caracterizado como instituição acadêmica, tem sido as OGNs que desenvolvem
projetos com as comunidades indígenas. Através da mídia eletrônica,
particularmente a internet, o Instituto Socioambiental (ISA), por exemplo,
apresenta em seu site o item "Quadro dos Povos", uma classificação
atualizada (setembro/1997) das línguas indígenas baseada na revisão do livro
*Línguas Brasileiras – para o conhecimento das línguas indígenas*, do Prof.
Rodrigues, já referido. Quando consultamos ainda o Arquivo da Funai, em seu
*site*, encontramos somente a indicação de pesquisa: "Consultar o livro de
Rodrigues acima citado". É interessante notar que justamente o hipertexto,
que simula "abrir" muitos arquivos, funciona de modo a dirigir o movimento
do leitor sempre para o mesmo arquivo. O movimento entre "o dado" e (aquilo
que aparece como) "o novo", ao mesmo tempo em que amplia as possibilidades
de acesso aos saberes, pela sua introdução em outros suportes de divulgação,
produz os mecanismos de seu controle, re-apresentando o que já se encontra
autorizado.
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Cientificidade e controle da memória
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Mais do que uma divisão de trabalho de arquivo, organizada por critérios
acadêmicos de divisão dos campos do saber, a filologia, de um lado, e os
estudos sincrônicos, de outro, a constituição dos arquivos apresentados
deixa antever a determinação do discurso religioso sobre o discurso
científico. Neste modo de circulação do saber, observamos um movimento que
transforma/dissimula o trabalho missionário de evangelização em trabalho
científico, garantindo-se um espaço de idoneidade e neutralidade política.
Neste processo, lembramos ainda que o trabalho de classificação das línguas,
e, conseqüentemente, classificação dos povos, foi e continua sendo
instrumento útil no controle da diversidade lingüístico-cultural no país,
tanto por agentes internos quanto externos. Podemos referir aqui o
levantamento realizado pela já citada AMTB, denominado *A situação das
tribos brasileiras*, que mapeia o "número de tribos, situação quanto à
distribuição da população" e categoriza os povos em três tipos: "Povo A –
Grupo etnolingüístico não evangelizado", "Povo B – Grupo etnolingüístico
evangelizado, porém não-cristão", e "Povo C – Grupo etnolingüístco cristão",
classificação que servirá para a planificação das ações evangelizadoras.
Diante das reflexões apresentadas, perguntamos: que saberes podem ou não ser
disponibilizados, ou seja, de que perspectiva se organiza esse arquivo?
Podemos dizer que o trabalho de classificação, de categorização, enfim, a
prática metodológica, ao organizar formalmente um campo da documentação,
produz uma certa assepsia no processo de construção do conhecimento,
selecionando e reorganizando um campo de memória, a partir de uma certa
conjuntura histórica.
Do nosso ponto de vista, é preciso que a organização dos "dados"
lingüísticos funcione não como um depósito de informações materializadas nos
documentos, mas como um espaço de saber organizado pela relação entre
diferentes memórias que compõe o social. Relação que, ao movimentar o
arquivo, produz sua significação histórica no acontecimento de linguagem.
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Línguas e a história no Brasil
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Acompanhar uma parte do processo histórico de construção destes arquivos nos
leva a dizer, sobre estes arquivos, os quais constituem um campo de saber,
que, ao distribuir a palavra, numa certa medida, ora para um Deus católico,
que legitima o tupi como língua que saiu da barbárie, ora para um Deus
evangélico, que proclama a salvação de todos os homens pela tradução do
"testamento", legitima estes discursos em nome da ciência. Neste espaço de
constituição de saberes, a imagem de um arquivo, significado como
depositário de um conhecimento científico sobre as línguas indígenas,
naturaliza e neutraliza as próprias línguas e seus falantes, pelo apagamento
do processo de sua constituição.
Queremos chamar a atenção para o fato de que esses arquivos têm uma
histórica, que tem a ver com a história da constituição das ciências e a
história das sociedades. Do nosso ponto de vista, a ciência deve se colocar
como um espaço democrático de circulação de conhecimento, espaço que se
configura não só de alianças mas também de confrontos.
Da perspectiva dos estudos lingüísticos, consideramos que o entendimento do
"espetáculo" dos 500 anos de Brasil se faz pela memória histórica dos povos
que o geraram. E não de sua exclusão.
(*) Lingüista, pesquisadora associada na Universidade Federal de São Carlos
(UFSCar)
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