"ACERVOS LINGÜÍSTICOS: Para compreender as línguas indígenas"
eduardo_rivail
kariri at GMAIL.COM
Tue May 27 16:31:04 UTC 2008
Caro Alan,
Obrigado pelas dicas. Vez ou outra visito a página de vocês para ver
o que há de novo. Mas será que seria possível criar um meio de manter
a comunidade informada sempre que houver novos acréscimos (seja
através desta lista, RSS feeds, etc.)?
Desde já, obrigado.
Abraço,
Eduardo
--- Em etnolinguistica at yahoogrupos.com.br, "Alan Vogel"
<alan_vogel at ...> escreveu
>
> Prezados listeiros,
>
> Li com interesse a contribuição da profa. Ceci, e gostaria de
informar que a SIL tem sempre colocado os resultados das suas
pesquisas à disposição de todos, tanto na área de lingüística como
nas de antropologia, educação, e outras. Como já tem sido divulgado
aqui, oferecemos para download muitos dos trabalhos publicados
através dos anos na nossa página na internet
(http://www.sil.org/americas/brasil/PortTcPb.htm), junto com outros
trabalhos novos inéditos. Na medida que dispomos de pessoal, estamos
também colocando os trabalhos que fazem parte do nosso Arquivo
Lingüístico. Por exemplo, recentemente foram colocados quatro
trabalhos de Roberto Dooley:
>
> Participants in Guarani Narrative (1976)
> Períodos Guarani (1977)
> Pronouns and Topicalization in Guarani Texts (1978)
> Apontamentos Sobre Ñandéva Guaraní Contemporâneo (1991)
>
> Os trabalhos mais antigos nunca foram em forma digital, e estamos
escaneando-os e preparando-os como documentos PDF "searchable", para
serem mais úteis aos leitores (do que se fossem apenas imagens). Em
alguns casos a versão atual reflete pequenas revisões dos autores,
mas na maioria dos casos, o conteúdo é essencialmente igual ao da
versão original do Arquivo Lingüístico.
>
> Alan Vogel
> Coordenador de Pesquisas Lingüísticas
> SIL - Brasil
>
> ----- Original Message -----
> From: Renato Athias
> To: etnolinguistica at yahoogrupos.com.br
> Sent: Wednesday, May 21, 2008 9:02 AM
> Subject: [etnolinguistica] "ACERVOS LINGÜÍSTICOS: Para
compreender as línguas indígenas"
>
>
>
>
> http://www.observatoriodaimprensa.com.br/ofjor/ofc05072000.htm
> ACERVOS LINGÜÍSTICOS
> Para compreender as línguas indígenas
>
> Ceci Maria Aparecida Honório (*)
>
> Desde as primeiras publicações sobre o tupinambá ou tupi antigo,
entre as quais destacamos a Arte de gramática da língua mais usada na
costa do Brasil obra do Padre Anchieta datada de 1595 , outros
estudos descritivos foram sendo produzidos, sustentando sobretudo os
trabalhos de tradução da literatura religiosa nesta e em outras
línguas indígenas. Os relatos de missionários e viajantes da época
passam a constituir, por outro lado, material de base para a
elaboração de dicionários bilingües (português/línguas indígenas) e
para a construção de uma historiografia brasileira. Destes estudos
decorrem outros subseqüentes, compondo um vasto conjunto de
documentação sobre as línguas do Brasil, hoje diluído em alguns
arquivos públicos ou incorporado a acervos, na forma de "coleções".
>
> Vamos nos centrar aqui no modo de organização de dois arquivos
que, ao lado de outros não menos importantes, estão representados
como centros de referência para pesquisas em línguas indígenas. Trata-
se do antigo acervo de Plínio Ayrosa, atualmente incorporado ao
acervo do MAE (Museu de Arqueologia e Etnologia da USP), e da Coleção
Línguas Indígenas do Brasil, que hoje integra o Cedae (Centro de
Documentação Cultural Alexandre Eulálio), no Instituto de Estudos da
Linguagem (IEL) da Unicamp.
>
> Queremos mostrar que o arquivo tem uma direção: o gesto de
organização de arquivo, ao incorporar um documento, rejeitar outros,
exerce um determinado controle da memória social, projeta leitores
possíveis nos acontecimentos de linguagem. Assim, tais arquivos
tornam ou não visíveis certos saberes acerca, neste caso, das línguas
do Brasil. O acesso a este tipo de conhecimento não se dá, pois, pelo
mero fato de o arquivo ter uma existência real. E sim pelo processo
histórico de sua constituição, modo de constituição de saberes. Deste
ponto de vista, o arquivo é, ao mesmo tempo, lugar de constituição e
de institucionalização destes saberes. Lugar de regulação do
conhecimento, que, portanto, não é neutro.
>
> Plínio Ayrosa: pesquisa e divulgação
>
> Em 1934, introduzindo a cadeira de Etnografia e Línguas Tupi-
Guarani na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, Plínio
Ayrosa passou a se dedicar aos estudos do tupi, vindo a fundar o
Museu de Etnografia que levou seu nome. Neste arquivo estão
organizadas documentações coordenadas, prefaciadas, comentadas ou
traduzidas por Ayrosa, referentes aos trabalhos lingüísticos de
missionários e viajantes: relatos, vocabulários, dicionários
bilingües (português-tupi), literatura religiosa (orações,
catecismos, diálogos, poemas etc). De sua autoria são também os
estudos dos designativos de origem tupi-guarani empregados na língua
portuguesa do Brasil, encontrados nos relatos de missionários,
viajantes, na literatura alencariana, na perspectiva geográfica
(toponímias) e etimológica.
>
> Ao organizar um certo saber sobre o tupi, o arquivo cria
condições para uma maior visibilidade dessa língua no país, pela
veiculação deste conhecimento na imprensa. Grande parte desta
produção foi publicada, principalmente no Arquivo Municipal de São
Paulo e no jornal O Estado de S.Paulo. Já em 1933 o autor havia
publicado suas "Primeiras noções de tupi" no Diário Oficial do Estado
de São Paulo.
>
> Este modo de circulação de saberes, que apresenta a língua tupi
como "a língua indígena", produz um certo controle da memória social
acerca das outras línguas faladas no Brasil Colonial, ao mesmo tempo
em que contribui na construção de um imaginário de língua indígena. É
importante lembrar que a língua representada neste arquivo
corresponde ao tupi gramatizado, ou seja, aquele que resultou da
sistematização das línguas da família tupi. Desse trabalho de
gramatização feito pelos jesuítas, resulta também outras obras
escritas em Tupi: poesias, teatro, compondo a literatura religiosa. A
formação deste corpo lingüístico assim organizado produz um estatuto
diferenciado a esta língua relativamente as outras línguas indígenas
faladas no país: o tupi antigo passa a funcionar como língua de
transição entre culturas. Torna-se, ao lado do latim, língua de
catequese, lugar de possibilidade da expansão da doutrina católica e
do projeto colonialista.
>
> Coleção de línguas
>
> Passemos agora ao arquivo organizado pelo professor Aryon
Dall'Igna Rodrigues, em um trabalho mais recente. O arquivo, que
compõe a intitulada "Coleção Línguas Indígenas do Brasil", foi criado
em 1973, no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, por
iniciativa do professor. Nele constam, quase que exclusivamente,
documentos produzidos por missionários do SIL (Summer Institute of
Linguistic). Tendo iniciado seus trabalhos no país na década de 50,
auge da lingüística sincrônica, o Summer produziu um volumoso
material descritivo sobre as línguas indígenas, relativamente a
outros estudos de lingüistas brasileiros. A serviço das Novas Tribos
do Brasil (igrejas fundamentalistas americanas), no que concerne à
tradução do novo testamento em línguas indígenas, para evangelização
dos povos que as falam, divulgou seu Arquivo Lingüístico, com sede
própria em Porto Velho (RO), com algumas instituições (científicas ou
não), sendo acolhido também em centros de documentação, tais como o
da Funai e o do Museu Nacional, duas grandes referências sobre o
assunto, só para se ter uma idéia.
>
> Os documentos pertencentes a esse arquivo se dividem em estudos
sincrônicos, vocabulários, dicionários bilingües, textos indígenas,
vocabulário padrão para estudos comparativos nas línguas indígenas
brasileiras. Há também os textos indígenas que incluem temas do
cotidiano, lendas, sendo muitos destes textos com tradução bilingüe
não só na língua indígena/português como também em língua
indígena/inglês. Levando-se em consideração a presença de muitos
missionários-lingüistas em área indígena já há mais de 40 anos, chama-
nos a atenção o fato de que grande parte do material lingüístico que
compõe o arquivo se apresenta em versões incompletas e rascunhadas. É
relevante ainda notar que o trabalho de tradução do Novo Testamento,
embora bastante representativo em termos quantitativos, não consta da
Coleção do Cedae à exceção da documentação referente à língua
catalogada como Mawé (Sateré), em que se encontram os textos
Questions on God e Sateré biblie terms, em inglês e sem data. Segundo
dados da Associação das Missões Transculturais Brasileiras (AMTB,
1999), já foram traduzidas ou estão em processo de tradução para as
línguas indígenas cerca de cinqüenta bíblias, o que significa que
mais de um quarto das populações indígenas brasileiras já têm o Novo
Testamento na sua língua.
>
> O procedimento que exclui este tipo de texto religioso por aporte
do SIL, ao mesmo tempo em que controla a cientificidade do arquivo,
restringe o acesso aos processos históricos que determinaram sua
constituição. Esse procedimento se faz tanto explicitamente, negando-
se ao texto a sua inclusão no acervo, quanto implicitamente, pelo
modo de categorização deste arquivo intitulado Línguas Indígenas do
Brasil que não refere o SIL no processo de sua nomeação. Este gesto
de leitura acoberta o discurso religioso pela transparência do
discurso científico. Além disso, a incorporação de alguns poucos
textos/artigos relativos a estudos de pesquisadores brasileiros, dos
quais destacamos o do próprio professor Aryon Rodrigues, e de um
missionário salesiano, o padre Casimiro Beksta, parece favorecer a
legitimação deste arquivo como um outro, que não corresponde ao
arquivo do SIL. Rejeitar alguns, incorporar outros. Gesto de leitura
que implica responsabilidade.
>
> Institucionalização de saberes
>
> Como vimos, a visibilidade de um certo tipo de produção
lingüística como trabalho científico se constrói pela própria
instituição que acolhe este arquivo. Constata-se a utilização de
dados do arquivo do SIL fundamentando trabalhos acadêmicos
concernidos ao estudo das línguas indígenas. O livro de Aryon
Rodrigues, Línguas Brasileiras para o conhecimento das línguas
indígenas, referência bastante significativa nos cursos de
Lingüística Indígena e/ou Lingüística Antropológica, como são
chamados, apresenta também ampla divulgação do material produzido
pelo SIL, tendo em vista a escassez de trabalhos científicos
concernidos por lingüistas brasileiros especializados na área até a
década de 70.
>
> Outro aspecto relevante a ser considerado no processo de
constituição do arquivo é que no próprio momento em que ele se
organiza para exercer também um papel na divulgação de seu material,
ele projeta alguns leitores possíveis: "As equipes do SIL estão
preparando para arquivamento e possível futura publicação, coleções
de textos indígenas em formato interlinear com análise morfêmica e
tradução livre. Este material será de grande interesse para etnólogos
(o conteúdo dos textos) e lingüistas (a gramática dos textos.)". Sem
nos esquecer da projeção de um outro leitor: aquele que domina a
língua inglesa. Muitos desses estudos estão escritos nesta língua.
>
> Este gesto de organização produz um efeito de regulação do
trabalho de leitura de arquivo: quem deve ler o quê? A memória desses
saberes fica assim reservada a certos especialistas.
>
> Um outro lugar de divulgação deste tipo de produção científica,
não caracterizado como instituição acadêmica, tem sido as OGNs que
desenvolvem projetos com as comunidades indígenas. Através da mídia
eletrônica, particularmente a internet, o Instituto Socioambiental
(ISA), por exemplo, apresenta em seu site o item "Quadro dos Povos",
uma classificação atualizada (setembro/1997) das línguas indígenas
baseada na revisão do livro Línguas Brasileiras para o conhecimento
das línguas indígenas, do Prof. Rodrigues, já referido. Quando
consultamos ainda o Arquivo da Funai, em seu site, encontramos
somente a indicação de pesquisa: "Consultar o livro de Rodrigues
acima citado". É interessante notar que justamente o hipertexto, que
simula "abrir" muitos arquivos, funciona de modo a dirigir o
movimento do leitor sempre para o mesmo arquivo. O movimento entre "o
dado" e (aquilo que aparece como) "o novo", ao mesmo tempo em que
amplia as possibilidades de acesso aos saberes, pela sua introdução
em outros suportes de divulgação, produz os mecanismos de seu
controle, re-apresentando o que já se encontra autorizado.
>
> Cientificidade e controle da memória
>
> Mais do que uma divisão de trabalho de arquivo, organizada por
critérios acadêmicos de divisão dos campos do saber, a filologia, de
um lado, e os estudos sincrônicos, de outro, a constituição dos
arquivos apresentados deixa antever a determinação do discurso
religioso sobre o discurso científico. Neste modo de circulação do
saber, observamos um movimento que transforma/dissimula o trabalho
missionário de evangelização em trabalho científico, garantindo-se um
espaço de idoneidade e neutralidade política.
>
> Neste processo, lembramos ainda que o trabalho de classificação
das línguas, e, conseqüentemente, classificação dos povos, foi e
continua sendo instrumento útil no controle da diversidade
lingüístico-cultural no país, tanto por agentes internos quanto
externos. Podemos referir aqui o levantamento realizado pela já
citada AMTB, denominado A situação das tribos brasileiras, que mapeia
o "número de tribos, situação quanto à distribuição da população" e
categoriza os povos em três tipos: "Povo A Grupo etnolingüístico
não evangelizado", "Povo B Grupo etnolingüístico evangelizado,
porém não-cristão", e "Povo C Grupo etnolingüístco cristão",
classificação que servirá para a planificação das ações
evangelizadoras.
>
> Diante das reflexões apresentadas, perguntamos: que saberes podem
ou não ser disponibilizados, ou seja, de que perspectiva se organiza
esse arquivo? Podemos dizer que o trabalho de classificação, de
categorização, enfim, a prática metodológica, ao organizar
formalmente um campo da documentação, produz uma certa assepsia no
processo de construção do conhecimento, selecionando e reorganizando
um campo de memória, a partir de uma certa conjuntura histórica.
>
> Do nosso ponto de vista, é preciso que a organização dos "dados"
lingüísticos funcione não como um depósito de informações
materializadas nos documentos, mas como um espaço de saber organizado
pela relação entre diferentes memórias que compõe o social. Relação
que, ao movimentar o arquivo, produz sua significação histórica no
acontecimento de linguagem.
>
> Línguas e a história no Brasil
>
> Acompanhar uma parte do processo histórico de construção destes
arquivos nos leva a dizer, sobre estes arquivos, os quais constituem
um campo de saber, que, ao distribuir a palavra, numa certa medida,
ora para um Deus católico, que legitima o tupi como língua que saiu
da barbárie, ora para um Deus evangélico, que proclama a salvação de
todos os homens pela tradução do "testamento", legitima estes
discursos em nome da ciência. Neste espaço de constituição de
saberes, a imagem de um arquivo, significado como depositário de um
conhecimento científico sobre as línguas indígenas, naturaliza e
neutraliza as próprias línguas e seus falantes, pelo apagamento do
processo de sua constituição.
>
> Queremos chamar a atenção para o fato de que esses arquivos têm
uma histórica, que tem a ver com a história da constituição das
ciências e a história das sociedades. Do nosso ponto de vista, a
ciência deve se colocar como um espaço democrático de circulação de
conhecimento, espaço que se configura não só de alianças mas também
de confrontos.
>
> Da perspectiva dos estudos lingüísticos, consideramos que o
entendimento do "espetáculo" dos 500 anos de Brasil se faz pela
memória histórica dos povos que o geraram. E não de sua exclusão.
>
> (*) Lingüista, pesquisadora associada na Universidade Federal de
São Carlos (UFSCar)
>
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